segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O Natal que não vai ser.

Presentes. Bacalhau, peru e rabanadas. Decorações e músicas de Natal. Famílias reunidas, pessoas alegres. Nem todas. A NM foi conhecer quem, por uma razão ou por outra, deixou de festejar a época e não vai ter um Natal feliz. 

Em Notícias Magazine 22.12.2013
por Sónia Morais Santos Fotografia de Orlando Almeida
 

Natal em terra queimada


Em redor, quase nada. Só árvores queimadas e chão seco. E um casario devorado pelas chamas. Isaura e Augusto vivem ali, no meio do quase nada, a caminho das Minas da Fonte Santa, Freixo de Espada à Cinta [não é à toa que se usa o nome da vila sempre que se quer dizer que se vai para muito longe], Bragança. A casa que lhes sobrou não fica à beira da estrada de alcatrão - é preciso andar de carro uns quilómetros por um caminho bravio de cabras, e em redor só montes e vales, calhaus, e pouco mais. Quase nada.
No dia 9 de Julho de 2013, ao nada juntou-se o fogo. Um daqueles incêndios dantescos que passaram no horário nobre das televisões e que encheram páginas de jornais com labaredas maiores que o possível. As notícias falavam de quem ia perdendo o que tinha, pouco ou muito. Isaura e Augusto perderam, nesse dia, o pouco que tinham. Que era muito.
Isaura Vicente, 67 anos, estava sozinha em casa. Sentiu-lhe o cheiro, ameaçador, e abriu a porta para ver se via o seu Augusto, 74 anos, que tinha saído com as cabras. «Quando cheguei ali à frente já o fogo estava de rodo de mim! Vim a correr para casa a buscar copos de água.»
O incêndio, entretanto, ocupava-se dos casinhotos onde o casal guardava as máquinas e alguns animais: «Quando acalmou, fui ao pé das mulas e já estavam mortas. Tudo me custou, mas ver as minhas mulinhas assim deitadas, todas queimadas, ai! Nem tenho palavras! E ficaram lá também 14 cabritos.»
Pouco depois, surgiu Augusto e as cabras. Todas menos três, que morreram cercadas pelo fogo. Dos cães pastores que iam com ele também só sobrou o Bolinhas, um cachorro que nem um ano tinha. Os outros cinco, morreram no fogo.
Isaura esfrega as mãos geladas uma na outra. O sol acabou de se pôr atrás dos montes em redor, e a temperatura desce, grau a grau de forma quase palpável. Augusto vai buscar uns paus e acende uma fogueira no chão da casa, debaixo da chaminé. A luz do fogo controlado será a única daquela noite gélida. Isaura acende mais umas velas, para ajudar a alumiar: «Tínhamos uns geradores, que nos davam luz. Com o incêndio derreteu tudo. Agora temos uma bateria, mas às vezes falha.»
A casa onde vivem, que miraculosamente sobreviveu àquele dia de inferno, não tem tecto, sequer. As telhas estão à vista e o frio rigoroso de Bragança invade o espaço, como se dentro fosse fora. Também não há água, desde o incêndio. É Augusto Lopes quem a vai buscar ao ribeiro distante, nuns cântaros a fazer lembrar tempos idos. A casa, feita de pedra sobre pedra, não tem televisão, não tem rádio. Tem uma panela com repolho ao lume, chouriças para assar, e quase nada.
A contabilidade crua do incêndio não lhes permite festejar o Natal como em outros anos. Não há vontade, não há alegria, vive-se com aperto. «Perdemos cabritos, cabras, muitas oliveiras, uma máquina de varejar, uma charrua, mais outras máquinas, as mulas, as casas, a palha. E perdemos os pastos. Durante meses, as cabras comiam cinza e bebiam água, sabe, menina? Algumas não resistiram. E a gente está para aqui, a dar graças por termos escapado ao fogo. Natal? Olhe, nem sei. Nem pensámos nisso. Mas tudo é como Deus quer. Tudo é como Deus manda.»

 


Natal no hospital

 
Há um batalhão de máquinas à volta da cama de Afonso, que cumprem funções vitais. Uma, respira por ele. Outra tem seringas programadas para o alimentarem, devagar. Há gráficos que indicam os batimentos cardíacos, a tensão arterial, o nível de oxigénio.
Afonso tem 7 anos e está nos cuidados intensivos do Hospital de Santo António, no Porto. Ventilado, sedado, a recuperar de uma pneumonia viral e a livrar-se de um fungo, que apanhou já no internamento. Helena, a mãe, quase não sai da sua beira. Apesar do muito por que já passou com ele, não se conforma com a dor de ter o filho internado, ainda para mais nesta altura do ano: «Parece que tudo dói mais. Às vezes, quando me cruzo com as pessoas na rua penso que nem sonham a sorte que têm. Não lhes desejo mal, não é isso, mas vejo-as às compras, na azáfama da época, às vezes a queixarem-se dos presentes que ainda têm de comprar, e eu com o meu filho na UCI. Não é fácil.»
Tudo seria mais leve se, quando melhorasse, Afonso saísse do hospital pelo seu pé. Se fosse preciso arreliar-se com ele por jogar à bola dentro de casa, por dar cabo das decorações natalícias, por dizer asneiras. Mas Afonso não anda, não fala, e tem um atraso no desenvolvimento cognitivo.
Nasceu no dia 23 de Fevereiro de 2006, quando só era suposto que nascesse em Maio. Nasceu às 26 semanas de gestação, quando devia ter nascido às 40. Pesava 860 gramas. E lutou desenfreadamente pela vida. «Esteve 4 meses internado e tudo o que era possível acontecer-lhe... aconteceu. Teve problemas digestivos, respiratórios, teve hidrocefalia causada pela não absorção do líquido da medula, teve de ser operado para encerrar o canal arterial, entre muitas outras cirurgias, teve hérnias, fez laser aos olhos... foi um pesadelo.»
O pior de tudo foi uma hemorragia cerebral e as consequentes lesões. Os médicos prepararam os pais para o pior. Esperavam que não sobrevivesse ou, se conseguisse salvar-se, alertavam para o facto de nunca vir a ser uma criança normal.
Foi como se o mundo tivesse decidido desabar todo de uma vez por cima daquela família. Helena sabia que a vida, tal como a conhecia, tinha acabado. E acabou, de facto. Ainda assim, a mãe agradece o facto do filho ter lutado como um guerreiro e ser hoje uma criança feliz: «Superou tudo. Os problemas respiratórios são o seu calcanhar de Aquiles, mas nunca esteve tão mal como agora.»
Helena, 39 anos, dá a mão ao seu menino e pede-lhe que faça um esforço por melhorar, para ir passar o Natal a casa, coisa que sabe ser praticamente impossível. Mas, ainda assim, quer acreditar na mesma força que o levou a sobreviver, quando todos diziam ser muito pouco provável: «O Afonso tem de ajudar! Senão o Pai Natal não traz presentes...»
Afonso abre um olho para logo o tornar a fechar. A mãe diz que ele compreende tudo o que se diz e que, nos últimos tempos antes de ser internado, começou a dar uns passos: «Foi uma grande alegria para nós. Decidi então meter baixa para me dedicar inteiramente a levá-lo à fisioterapia, numa clínica com técnicas muito inovadoras, em Espinho. Estava a evoluir bem até que aconteceu isto... e pronto. Lá ficou a terapia interrompida. É uma luta que temos. Para sempre. Mas é preciso andar para a frente. Pior do que não termos o que queríamos na vida é as pessoas terem pena de nós.»
Helena e o marido vão passar o Natal no hospital e isso não é bem um Natal. É uma noite pior do que as outras, sem embrulhos, sem gargalhadas, sem bolo-rei. «É suposto as crianças passarem a noite a rir e a brincar. Que alegria é a nossa, com ele aqui? Resta-me esperar que passe depressa.»





Natal de solidão


As luzes de Natal deixaram de brilhar no dia 19 de Dezembro de 1987. A partir desse dia, tudo perdeu a graça. «Foi o dia em que fiquei sem o meu marido. Estávamos casados há 37 anos. Tinha ficado sem mãe há 7 meses quando o meu marido apanhou uma pneumonia. Veio morrer a casa. E a missa de 7º dia foi na véspera de Natal. A partir daí, para mim, acabou-se.»
Beatriz Castro, 77 anos, deprimiu nesses anos que se seguiram. Tinha ficado sem o seu homem, o único amor da sua vida. Conheceram-se já adolescentes e apaixonaram-se à primeira vista. Eram primos direitos e a família não queria que se juntassem. «Diziam que íamos ter filhos defeituosos, tinham medo. Mas nós não queríamos saber e foi preciso o Tribunal de Família dizer que sim, podíamos casar. Casámos.» Numa irónica partida do destino, nunca tiveram filhos. Não por medo da consanguinidade. Mas porque não conseguiram: «O meu útero não tinha desenvolvido. Tive muita pena porque sempre gostei muito de crianças. Já viu como são as coisas? Tanta coisa e afinal...»
Foram 37 anos de dedicação um ao outro. E quando se viu sozinha, Beatriz foi-se muito abaixo. Quis morrer. Quase enlouqueceu: «Tive dois esgotamentos. Passei 90 dias no hospital de dia do São João. Não tinha vontade de viver. Estava sozinha e passava o Natal todo a gritar. Só o mar a bater nas rochas me acalmava. Ainda hoje é assim. Quando estou mais triste, vou à praia, e fico logo melhor. Dá-me paz.»
Cinco anos depois, decidiu voltar a ter consoada. E assim é, até aos dias de hoje. Sem filhos ou família próxima que lhe faça companhia, Beatriz Castro põe a mesa com dois pratos, dois pares de talheres, dois copos. «Sou só eu, mas é a minha maneira de não me sentir tão só. Ponho uma toalha de festa e a melhor loiça. Tudo para dois. Cozo três postinhas de bacalhau, mais uns grelos. Faço um bocadinho de chocolate, umas rabanadinhas, aletria, um pudinzinho. E é da maneira que passo o meu Natal.»
As palavras, ditas assim, ficam a ecoar na sala, como que suspensas no espaço e no tempo. De todas as palavras, são as que se destacam, as que ganham vida, corpo, dor. É impossível não imaginar Beatriz, vestida para o Natal, a compor uma mesa para dois, num silêncio solene. Um prato em frente ao outro, a supor conversas, partilhas, sorrisos. E, afinal, nada. Só Beatriz e a sua consoada solitária. É impossível não a imaginar simulando uma conversa que, afinal, nunca passará de monólogo: «Então, esse bacalhau? Não está salgado, pois não? E que tal a aletria? Não queres mais uma rabanada?» E, afinal, nada. No fim da noite, é impossível não vislumbrar Beatriz a levantar a mesa, os pratos, os talheres, os copos, a toalha de festa. A passar por água o prato sujo e a tornar a arrumar o prato limpo. Até ao Natal seguinte. Até ao próximo vazio.



 

Natal sem presentes

Tem um olhar triste, uma expressão marcada. Não precisa abrir a boca para se saber, com uma certeza quase científica, que é de agruras, a sua vida, a sua história, o seu caminho. Há no olhar um certo abandono, quase uma desistência. E, ao mesmo tempo, uma inquietação, um anseio. Quase uma fome de qualquer coisa. Talvez de paz.
Fernanda Seara tem 36 anos e três filhos. A Marisa tem 6 anos e nasceu de uma primeira relação que não deu certo. Depois, vieram os gémeos Mariana e Martim, hoje com dois anos, de uma nova relação que tornou a falhar. O segundo pai bebia para lá da conta e, nesses dias de tempestade, partia tudo o que via à frente. Marisa, a primeira filha, há-de ter assistido a algumas dessas cenas canalhas, de gritos e violência e destempero. Fernanda, que já passara por muito, achou que aquilo não era vida para criar os filhos, e saiu de casa grávida de poucas semanas, mas já consciente de que teria mais duas bocas para sustentar, em vez de só mais uma.
Depois, pouco mais que nada. Escapou-se para junto da mãe, em Ribeira de Pena, uma vila atrás - mas mesmo atrás - dos montes. E foi a mãe que lhe foi valendo, quando nada tinha para dar aos filhos, a mais crescida e os dois que entretanto chegaram. Durante a gravidez, passou mesmo as passinhas do Algarve. Sem emprego e sem qualquer apoio: «Meti os papéis para o rendimento mínimo três vezes mas nunca recebi. Não tinha dinheiro nenhum! O que me valeu foi a minha mãe, que nos ajudava com a comida. Mas não tinha mais nada. Nem roupa nem nada.»
Em desespero, Fernanda recorreu ao OLX, a pedir roupa, a pedir ajuda. Em vez respostas sérias, recebeu propostas indecentes: «Fui convidada a fazer filmes pornográficos. E eu ainda disse: "mas estão doidos? Eu estou grávida!".» Responderam-lhe que não fazia mal, que havia bastante mercado para isso. Não aceitou. Entretanto, recebeu o telefonema de um benfeitor. O produtor de espectáculos Paulo Sousa e Costa quis saber das suas necessidades. E passado pouco tempo enviou uma caixa grande com roupa, fraldas, leite. Houve marcas a oferecer o carrinho, mais algumas ajudas.
A vida melhorou qualquer coisa. Mas Fernanda continuou sempre à procura de emprego. A bater a todas as portas, sem que nenhuma se abrisse. O pai da Marisa contribui com a sua parte para a educação da filha, o pai dos gémeos esqueceu-se por completo que tinha filhos. Fernanda continuou sempre a contar com o apoio da mãe. Mas quando a mãe morreu, há um ano, as dificuldades acentuaram-se. «Para mim, a partir daí acabou o Natal, a pouca alegria que ainda havia. Porque mesmo com os apertos por que passei, ainda vivia a época com gosto. Agora, sem dinheiro e sem a minha mãe... acabou-se.»
O Natal de Fernanda e dos filhos será parco, ensombrado pela falta e pela perda: «Não vai haver presentes. Não há dinheiro para isso. Pode ser que para o ano seja melhor...»
Nota: Já depois da entrevista, Fernanda arranjou finalmente trabalho como empregada de limpeza, na Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. Uma espécie de milagre de Natal que, não permitindo ainda grandes mudanças neste Natal, poderá ser uma luz ao fundo do túnel na vida de agruras de Fernanda Seara.

3 comentários:

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

Porra!!! Que dor!!
È o que consigo dizer agora.....

Que Afonso melhore!! que continue um lutador!!

As crianças sem brinquedos...e provavelmente com falta de alimentos...
isto revolta tanto...

Anónimo disse...

Que histórias.... de fazer vir as lágrimas aos olhos e de ficar com um nó na garganta. Realmente queixamo-nos muitas vezes de "barriga cheia" e nem nos apercebemos de como somos muito felizes.

Soneca disse...

Infelizmente quantos casos similares não existem por este país fora...
Às vezes, mesmo ali à nossa beira e cegos que andamos nas nossas vidas, nem nos apercebemos.
Apesar de tudo, o caso que mais me tocou foi o da solidão.
Ninguém... mas ninguém deveria ter de passar o Natal sozinho!