segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O Natal que não vai ser.

Presentes. Bacalhau, peru e rabanadas. Decorações e músicas de Natal. Famílias reunidas, pessoas alegres. Nem todas. A NM foi conhecer quem, por uma razão ou por outra, deixou de festejar a época e não vai ter um Natal feliz. 

Em Notícias Magazine 22.12.2013
por Sónia Morais Santos Fotografia de Orlando Almeida
 

Natal em terra queimada


Em redor, quase nada. Só árvores queimadas e chão seco. E um casario devorado pelas chamas. Isaura e Augusto vivem ali, no meio do quase nada, a caminho das Minas da Fonte Santa, Freixo de Espada à Cinta [não é à toa que se usa o nome da vila sempre que se quer dizer que se vai para muito longe], Bragança. A casa que lhes sobrou não fica à beira da estrada de alcatrão - é preciso andar de carro uns quilómetros por um caminho bravio de cabras, e em redor só montes e vales, calhaus, e pouco mais. Quase nada.
No dia 9 de Julho de 2013, ao nada juntou-se o fogo. Um daqueles incêndios dantescos que passaram no horário nobre das televisões e que encheram páginas de jornais com labaredas maiores que o possível. As notícias falavam de quem ia perdendo o que tinha, pouco ou muito. Isaura e Augusto perderam, nesse dia, o pouco que tinham. Que era muito.
Isaura Vicente, 67 anos, estava sozinha em casa. Sentiu-lhe o cheiro, ameaçador, e abriu a porta para ver se via o seu Augusto, 74 anos, que tinha saído com as cabras. «Quando cheguei ali à frente já o fogo estava de rodo de mim! Vim a correr para casa a buscar copos de água.»
O incêndio, entretanto, ocupava-se dos casinhotos onde o casal guardava as máquinas e alguns animais: «Quando acalmou, fui ao pé das mulas e já estavam mortas. Tudo me custou, mas ver as minhas mulinhas assim deitadas, todas queimadas, ai! Nem tenho palavras! E ficaram lá também 14 cabritos.»
Pouco depois, surgiu Augusto e as cabras. Todas menos três, que morreram cercadas pelo fogo. Dos cães pastores que iam com ele também só sobrou o Bolinhas, um cachorro que nem um ano tinha. Os outros cinco, morreram no fogo.
Isaura esfrega as mãos geladas uma na outra. O sol acabou de se pôr atrás dos montes em redor, e a temperatura desce, grau a grau de forma quase palpável. Augusto vai buscar uns paus e acende uma fogueira no chão da casa, debaixo da chaminé. A luz do fogo controlado será a única daquela noite gélida. Isaura acende mais umas velas, para ajudar a alumiar: «Tínhamos uns geradores, que nos davam luz. Com o incêndio derreteu tudo. Agora temos uma bateria, mas às vezes falha.»
A casa onde vivem, que miraculosamente sobreviveu àquele dia de inferno, não tem tecto, sequer. As telhas estão à vista e o frio rigoroso de Bragança invade o espaço, como se dentro fosse fora. Também não há água, desde o incêndio. É Augusto Lopes quem a vai buscar ao ribeiro distante, nuns cântaros a fazer lembrar tempos idos. A casa, feita de pedra sobre pedra, não tem televisão, não tem rádio. Tem uma panela com repolho ao lume, chouriças para assar, e quase nada.
A contabilidade crua do incêndio não lhes permite festejar o Natal como em outros anos. Não há vontade, não há alegria, vive-se com aperto. «Perdemos cabritos, cabras, muitas oliveiras, uma máquina de varejar, uma charrua, mais outras máquinas, as mulas, as casas, a palha. E perdemos os pastos. Durante meses, as cabras comiam cinza e bebiam água, sabe, menina? Algumas não resistiram. E a gente está para aqui, a dar graças por termos escapado ao fogo. Natal? Olhe, nem sei. Nem pensámos nisso. Mas tudo é como Deus quer. Tudo é como Deus manda.»

 


Natal no hospital

 
Há um batalhão de máquinas à volta da cama de Afonso, que cumprem funções vitais. Uma, respira por ele. Outra tem seringas programadas para o alimentarem, devagar. Há gráficos que indicam os batimentos cardíacos, a tensão arterial, o nível de oxigénio.
Afonso tem 7 anos e está nos cuidados intensivos do Hospital de Santo António, no Porto. Ventilado, sedado, a recuperar de uma pneumonia viral e a livrar-se de um fungo, que apanhou já no internamento. Helena, a mãe, quase não sai da sua beira. Apesar do muito por que já passou com ele, não se conforma com a dor de ter o filho internado, ainda para mais nesta altura do ano: «Parece que tudo dói mais. Às vezes, quando me cruzo com as pessoas na rua penso que nem sonham a sorte que têm. Não lhes desejo mal, não é isso, mas vejo-as às compras, na azáfama da época, às vezes a queixarem-se dos presentes que ainda têm de comprar, e eu com o meu filho na UCI. Não é fácil.»
Tudo seria mais leve se, quando melhorasse, Afonso saísse do hospital pelo seu pé. Se fosse preciso arreliar-se com ele por jogar à bola dentro de casa, por dar cabo das decorações natalícias, por dizer asneiras. Mas Afonso não anda, não fala, e tem um atraso no desenvolvimento cognitivo.
Nasceu no dia 23 de Fevereiro de 2006, quando só era suposto que nascesse em Maio. Nasceu às 26 semanas de gestação, quando devia ter nascido às 40. Pesava 860 gramas. E lutou desenfreadamente pela vida. «Esteve 4 meses internado e tudo o que era possível acontecer-lhe... aconteceu. Teve problemas digestivos, respiratórios, teve hidrocefalia causada pela não absorção do líquido da medula, teve de ser operado para encerrar o canal arterial, entre muitas outras cirurgias, teve hérnias, fez laser aos olhos... foi um pesadelo.»
O pior de tudo foi uma hemorragia cerebral e as consequentes lesões. Os médicos prepararam os pais para o pior. Esperavam que não sobrevivesse ou, se conseguisse salvar-se, alertavam para o facto de nunca vir a ser uma criança normal.
Foi como se o mundo tivesse decidido desabar todo de uma vez por cima daquela família. Helena sabia que a vida, tal como a conhecia, tinha acabado. E acabou, de facto. Ainda assim, a mãe agradece o facto do filho ter lutado como um guerreiro e ser hoje uma criança feliz: «Superou tudo. Os problemas respiratórios são o seu calcanhar de Aquiles, mas nunca esteve tão mal como agora.»
Helena, 39 anos, dá a mão ao seu menino e pede-lhe que faça um esforço por melhorar, para ir passar o Natal a casa, coisa que sabe ser praticamente impossível. Mas, ainda assim, quer acreditar na mesma força que o levou a sobreviver, quando todos diziam ser muito pouco provável: «O Afonso tem de ajudar! Senão o Pai Natal não traz presentes...»
Afonso abre um olho para logo o tornar a fechar. A mãe diz que ele compreende tudo o que se diz e que, nos últimos tempos antes de ser internado, começou a dar uns passos: «Foi uma grande alegria para nós. Decidi então meter baixa para me dedicar inteiramente a levá-lo à fisioterapia, numa clínica com técnicas muito inovadoras, em Espinho. Estava a evoluir bem até que aconteceu isto... e pronto. Lá ficou a terapia interrompida. É uma luta que temos. Para sempre. Mas é preciso andar para a frente. Pior do que não termos o que queríamos na vida é as pessoas terem pena de nós.»
Helena e o marido vão passar o Natal no hospital e isso não é bem um Natal. É uma noite pior do que as outras, sem embrulhos, sem gargalhadas, sem bolo-rei. «É suposto as crianças passarem a noite a rir e a brincar. Que alegria é a nossa, com ele aqui? Resta-me esperar que passe depressa.»





Natal de solidão


As luzes de Natal deixaram de brilhar no dia 19 de Dezembro de 1987. A partir desse dia, tudo perdeu a graça. «Foi o dia em que fiquei sem o meu marido. Estávamos casados há 37 anos. Tinha ficado sem mãe há 7 meses quando o meu marido apanhou uma pneumonia. Veio morrer a casa. E a missa de 7º dia foi na véspera de Natal. A partir daí, para mim, acabou-se.»
Beatriz Castro, 77 anos, deprimiu nesses anos que se seguiram. Tinha ficado sem o seu homem, o único amor da sua vida. Conheceram-se já adolescentes e apaixonaram-se à primeira vista. Eram primos direitos e a família não queria que se juntassem. «Diziam que íamos ter filhos defeituosos, tinham medo. Mas nós não queríamos saber e foi preciso o Tribunal de Família dizer que sim, podíamos casar. Casámos.» Numa irónica partida do destino, nunca tiveram filhos. Não por medo da consanguinidade. Mas porque não conseguiram: «O meu útero não tinha desenvolvido. Tive muita pena porque sempre gostei muito de crianças. Já viu como são as coisas? Tanta coisa e afinal...»
Foram 37 anos de dedicação um ao outro. E quando se viu sozinha, Beatriz foi-se muito abaixo. Quis morrer. Quase enlouqueceu: «Tive dois esgotamentos. Passei 90 dias no hospital de dia do São João. Não tinha vontade de viver. Estava sozinha e passava o Natal todo a gritar. Só o mar a bater nas rochas me acalmava. Ainda hoje é assim. Quando estou mais triste, vou à praia, e fico logo melhor. Dá-me paz.»
Cinco anos depois, decidiu voltar a ter consoada. E assim é, até aos dias de hoje. Sem filhos ou família próxima que lhe faça companhia, Beatriz Castro põe a mesa com dois pratos, dois pares de talheres, dois copos. «Sou só eu, mas é a minha maneira de não me sentir tão só. Ponho uma toalha de festa e a melhor loiça. Tudo para dois. Cozo três postinhas de bacalhau, mais uns grelos. Faço um bocadinho de chocolate, umas rabanadinhas, aletria, um pudinzinho. E é da maneira que passo o meu Natal.»
As palavras, ditas assim, ficam a ecoar na sala, como que suspensas no espaço e no tempo. De todas as palavras, são as que se destacam, as que ganham vida, corpo, dor. É impossível não imaginar Beatriz, vestida para o Natal, a compor uma mesa para dois, num silêncio solene. Um prato em frente ao outro, a supor conversas, partilhas, sorrisos. E, afinal, nada. Só Beatriz e a sua consoada solitária. É impossível não a imaginar simulando uma conversa que, afinal, nunca passará de monólogo: «Então, esse bacalhau? Não está salgado, pois não? E que tal a aletria? Não queres mais uma rabanada?» E, afinal, nada. No fim da noite, é impossível não vislumbrar Beatriz a levantar a mesa, os pratos, os talheres, os copos, a toalha de festa. A passar por água o prato sujo e a tornar a arrumar o prato limpo. Até ao Natal seguinte. Até ao próximo vazio.



 

Natal sem presentes

Tem um olhar triste, uma expressão marcada. Não precisa abrir a boca para se saber, com uma certeza quase científica, que é de agruras, a sua vida, a sua história, o seu caminho. Há no olhar um certo abandono, quase uma desistência. E, ao mesmo tempo, uma inquietação, um anseio. Quase uma fome de qualquer coisa. Talvez de paz.
Fernanda Seara tem 36 anos e três filhos. A Marisa tem 6 anos e nasceu de uma primeira relação que não deu certo. Depois, vieram os gémeos Mariana e Martim, hoje com dois anos, de uma nova relação que tornou a falhar. O segundo pai bebia para lá da conta e, nesses dias de tempestade, partia tudo o que via à frente. Marisa, a primeira filha, há-de ter assistido a algumas dessas cenas canalhas, de gritos e violência e destempero. Fernanda, que já passara por muito, achou que aquilo não era vida para criar os filhos, e saiu de casa grávida de poucas semanas, mas já consciente de que teria mais duas bocas para sustentar, em vez de só mais uma.
Depois, pouco mais que nada. Escapou-se para junto da mãe, em Ribeira de Pena, uma vila atrás - mas mesmo atrás - dos montes. E foi a mãe que lhe foi valendo, quando nada tinha para dar aos filhos, a mais crescida e os dois que entretanto chegaram. Durante a gravidez, passou mesmo as passinhas do Algarve. Sem emprego e sem qualquer apoio: «Meti os papéis para o rendimento mínimo três vezes mas nunca recebi. Não tinha dinheiro nenhum! O que me valeu foi a minha mãe, que nos ajudava com a comida. Mas não tinha mais nada. Nem roupa nem nada.»
Em desespero, Fernanda recorreu ao OLX, a pedir roupa, a pedir ajuda. Em vez respostas sérias, recebeu propostas indecentes: «Fui convidada a fazer filmes pornográficos. E eu ainda disse: "mas estão doidos? Eu estou grávida!".» Responderam-lhe que não fazia mal, que havia bastante mercado para isso. Não aceitou. Entretanto, recebeu o telefonema de um benfeitor. O produtor de espectáculos Paulo Sousa e Costa quis saber das suas necessidades. E passado pouco tempo enviou uma caixa grande com roupa, fraldas, leite. Houve marcas a oferecer o carrinho, mais algumas ajudas.
A vida melhorou qualquer coisa. Mas Fernanda continuou sempre à procura de emprego. A bater a todas as portas, sem que nenhuma se abrisse. O pai da Marisa contribui com a sua parte para a educação da filha, o pai dos gémeos esqueceu-se por completo que tinha filhos. Fernanda continuou sempre a contar com o apoio da mãe. Mas quando a mãe morreu, há um ano, as dificuldades acentuaram-se. «Para mim, a partir daí acabou o Natal, a pouca alegria que ainda havia. Porque mesmo com os apertos por que passei, ainda vivia a época com gosto. Agora, sem dinheiro e sem a minha mãe... acabou-se.»
O Natal de Fernanda e dos filhos será parco, ensombrado pela falta e pela perda: «Não vai haver presentes. Não há dinheiro para isso. Pode ser que para o ano seja melhor...»
Nota: Já depois da entrevista, Fernanda arranjou finalmente trabalho como empregada de limpeza, na Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. Uma espécie de milagre de Natal que, não permitindo ainda grandes mudanças neste Natal, poderá ser uma luz ao fundo do túnel na vida de agruras de Fernanda Seara.

domingo, 27 de outubro de 2013

Luta por ser humano


      Photo Olando Almeida


Passeio-me entre prateleiras que fervilham em murmúrios de desejo, promessas de prazer, elogios à beleza, gritos de liberdade e actos de coragem .
Vozes que dão corpo ao pensamento para viver a lenda da solidão acompanhada.


domingo, 20 de outubro de 2013

Barrigas de anjos e papos de freiras


     Photo Orlando Almeida


Receitas domingueiras para uma boa dose de Fé,
1/2 litro de água para 2 quilos de gesso 
e uma pitada qb de criatividade...


sábado, 15 de junho de 2013

Se Portugal fosse uma canção

Em Notícias Magazine 09.06.2013
por Sónia Morais Santos e Fotografia de Orlando Almeida


Na véspera do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, escolhemos algumas canções que falam de Portugal e fomos à procura das pessoas que encaixam nessas palavras - e que poderiam bem ter sido inspiração para elas. Um retrato cantado de um país que se celebra, ainda que não esteja em maré de celebrações. Eis os portugueses reais por detrás das canções sobre Portugal.




 Ai Portugal, Portugal de e por Jorge Palma

A canção pergunta de que é que Portugal está à espera. João Nogueira Santos, 41 anos, também. Há cinco anos que se pergunta o mesmo. Tudo começou com um momento de perplexidade: «Um dia, há cinco anos, descobri uma coisa que me deixou perturbado: nem eu nem nenhum dos meus amigos estávamos filiados em qualquer partido político. E no entanto estávamos sempre a queixar-nos os partidos. Um contrassenso. Como podíamos queixar-nos, se nem sequer nos dignávamos estar lá dentro, para escolher melhor as lideranças, para votar, para dar ideias, para influenciar? Tinha de fazer alguma coisa.»
E fez. Filiou-se no Partido Socialista . De seguida, falou na sua ideia ao amigo Carlos Macedo e Cunha, 40 anos, e juntos (um filiado no PS, o outro no PSD), criaram, em 2010, o movimento: «Adere, Vota e Intervém num partido político - cidadania para a mudança». O objetivo do movimento é levar um número maciço de cidadãos, com profissão fora da política, para dentro dos partidos políticos (sejam eles quais forem): «Votar de quatro em quatro anos não basta. É preciso exercer uma cidadania ativa, para que o real interesse dos cidadãos esteja representado em cada partido. Não faz qualquer sentido dizer que não se quer entrar num partido porque se vai ficar corrupto como os políticos todos. É um argumento tolo. Também não vale dizer que não se tem tempo. Há sempre tempo. E faz ainda menos sentido dizer que "isso da política é para os políticos", deixando em mãos alheias decisões que nos afetam a todos. A verdade é que podemos realmente mudar as coisas se agirmos coletivamente.»
Os anos passaram e nem João nem Carlos perderam o entusiasmo ou a fé nos cidadãos do seu país. Mesmo que pouco tenha mudado desde que eles começaram nesta luta. Sabem que têm ainda um longo caminho pela frente, até porque não se mudam mentalidades de um dia para o outro: «É uma causa em que acreditamos. E que é uma causa certa. Tem sobretudo que ver com o país que queremos para os nossos filhos. Nós não queremos continuar à espera do D. Sebastião. Queremos ser nós a decidir, a intervir, a ter uma palavra na escolha dos líderes em que acreditamos e nas medidas a serem tomadas.»
João Nogueira Santos é gestor de inovação , Carlos Macedo e Cunha é empresário. Nem um nem outro aprovam quem vive à sombra da política sem nunca ter tido profissão ou caminho fora dela. Mas reforçam que não querem diabolizar os partidos, pelo contrário: «Não estamos aqui a dizer que nós somos bons e eles são maus. Não é isso! Eles são é muitos e nós poucos. E é preciso lutar contra esta inércia dos cidadãos. Temos de acabar com os votos de autocarro. Com o jogo de interesses. Com a corrupção. Há políticos que defendem estas mudanças mas que não conseguem porque são poucos. E, por isso, há dentro dos partidos quem aplauda a nossa iniciativa e a entrada de sangue fresco. Há quem queira a renovação. Se cem mil portugueses aderissem aos partidos, a nossa vida mudaria, porque os cidadãos tornar-se-iam a força e o motor dentro dos partidos. E, a partir daí, o resto funcionaria bem. É preciso sair da zona de conforto!»
É, no fundo, a mensagem de Jorge Palma. Uma mensagem que provoca, que espicaça, que deseja que o próximo 10 de Junho seja comemorado com outro entusiasmo, com outra dignidade, com outro brio: «Ai, Portugal, Portugal/ enquanto ficares à espera/ninguém te vai ajudar .»


                            Homem do Leme Letra de Tim por Xutos e Pontapés

A expressão «menino de ouro» assenta-lhe que nem uma luva. Ricardo Carvalho tem 25 anos e já foi considerado o empresário do ano pela revista Exame . Dedica-se à compra de ouro, tem mais de setenta lojas espalhadas pelo país, sem recurso ao franchising , e fatura cerca de vinte milhões de euros por ano. No panorama atual, pessoas como ele são os «homens do leme».
Ricardo começou aos 18 anos a trabalhar com o pai n a compra e venda de ouro. «Comprávamos peças usadas e depois tornávamos a vendê-las. A partir de 2006 comecei a perceber que a crise estava a sufocar o negócio da venda de ouro. E então abri duas lojas de compra de ouro já não para tornar a vender, mas para fundir e vender para ouro de investimento.» Assim começava a Milénio Gold.
Foi uma espécie de navegação à bolina, a deste homem do leme. Os ventos da crise estavam de feição e foi só aproveitar. O barco ganhou velocidade e cruzou os mares agitados com sucesso. Impossível não pensar na ironia disto. Ricardo Carvalho é um empresário próspero porque o seu país está em maus lençóis. Enriqueceu aproveitando a aflição de muitos portugueses. «Claro que isso me ocorreu. Não é agradável pensar que se está a lucrar com a desgraça alheia. Às vezes chegam aí pessoas com histórias terríveis. Mas depois preferi pensar que, se não fossem empresas como a minha, muitas pessoas não conseguiriam ultrapassar esta fase difícil das suas vidas. Vendem o ouro, recebem o dinheiro e vão compor o que está descomposto. Se não o pudessem fazer era ainda pior.»
Já diz o ditado: vão-se os anéis, ficam os dedos. Ainda assim, não deixa de ser um paradoxo pensar que o seu negócio dourado depende de um país em tanga. Se o país - que é o seu - sair da crise, acaba-se o vento de feição e a pergunta que fica no ar é: será que o barco se aguenta? Ricardo tem a resposta na ponta da língua , não se atrapalha, não é parvo nenhum: «Se as coisas melhorarem, como espero que melhorem porque ninguém quer ver o seu país neste estado, podemos sempre voltarmo-nos para o negócio que o meu pai fundou e que foi onde comecei, de compra e venda de ouro usado.»
Apesar d e o negócio já estar mais estagnado do que propriamente a crescer, não só pela subida do preço do ouro como pela quantidade impressionante de lojas como as suas, Ricardo quer continuar a sua expansão. Gostava de chegar às cem lojas ainda este ano. Já abriu na Galiza e na Catábria e vai continuar a apostar em Espanha. «O meu sonho mais imediato é Madrid». O segredo do seu sucesso passa pela quantidade de lojas, por não ter sócios e por ter fugido ao franchising . Assim consegue preços mais competitivos do que os vizinhos do lado.
Por vezes também acontece não derreter algumas peças, por serem especialmente antigas ou até divertidas: «Um dia apareceu-me um pendente de um fio que era um pénis de ouro. Não o fundi porque achei graça. No que toca a coisas esquisitas... o pior são mesmo os dentes de ouro. As minhas funcionárias ficam sempre incomodadas, sobretudo quando é uma dentadura. Vê-se que aquilo foi retirado de um morto e arrepia. Depois, claro, há peças extraordinárias, que custa fundir. Mas não posso ficar com tudo. Tenho de ser racional.»
Ricardo Carvalho ganhou o Prémio Exame de 2013. É o empresário do ano. Numa altura em que se fala tanto em empreendedorismo, o seu nome sobressai. Ele pensou que era uma brincadeira, quando lhe ligaram a dizer que tinha ganho a distinção. «Eu trabalho muito, é verdade. Mas também acho que tive sorte. Limitei-me a aproveitar uma oportunidade. Se não fosse isto, sinceramente, não sei como poderia empreender. Fala-se muito de empreendedorismo mas... nesta altura? Empreender em quê? O país está numa crise profunda, as pessoas têm medo de arriscar e fazem muito bem em ter medo. Se não fosse a compra de ouro, eu podia bem estar a trabalhar numa fábrica qualquer. Mas fiquei contente, é sempre uma motivação. »



 Amália Rodrigues Povo que lavas no rio Letra de Pedro Homem de Mello 

Maria do Céu Oliveira tem 79 anos e é lavadeira desde que se conhece como gente. Ao todo, se pensar bem, serão mais de 70 anos de pés enfiados na ribeira das Luzes, Ovar, e mãos a esfregar camisas, calças, lençóis, colchas, tapetes. Mais de 70 anos a devolver a limpeza aos tecidos das freguesas que, mesmo depois de aparecerem e se vulgarizarem as máquinas de lavar, preferem o rigor e a perfeição das mãos das lavadeiras. «As freguesas gostam da roupa lavadinha à mão, minha santa. O sabãozinho faz a roupinha lisa, as mãos também e a água faz o resto, não sabe? A máquina está ali só trac-trac... não! Não gosto de lavar à máquina! Nem tenho! A minha roupinha trago e lavo aqui, como as outras.»
Não deixa de ser singular que, num país que se quer (e se diz) moderno, tecnológico e ufanamente europeu, haja ainda mulheres que parecem saídas da Aldeia da Roupa Branca , o filme de Chianca de Garcia de 1938. Na ribeira das Luzes, há lençóis estendidos nas ervas, a corar ao sol, e mulheres que cantam enquanto esfregam roupas alheias nas pedras. Parece cenário. Mas não é. Maria do Céu diz que é assim desde que é cachopa, se bem que hoje não são tantas as lavadeiras e que basta uma chuvinha - como a daquele dia - para não se chegarem ao rio, «as finas». Já ela, Deus lhe livre de ficar-se por casa, nasceu da água e é na água que se há de finar: «Dia que não venha ao rio já nem sei que me parece. Gosto muito, minha santa. Tanto que nem sei. Quando está solzinho até apetece a gente estar aqui. »
O contraste entre o país a dois tempos está em toda a parte mas não é preciso ir muito longe para o detetar. Basta, na verdade, olhar para a peça de roupa que Maria do Céu tem nas mãos, uma farda com a inscrição «Salvador Caetano», grande empresa com tecnologia de ponta, que ela ora mergulha na ribeira ora puxa à tona de água para nova esfrega manual com sabão branco Clarim. O país avançado nas mãos do país tradicional. Duas realidades da mesma realidade.
Maria do Céu é cantadeira, além de lavadeira. Já diz o povo que quem canta seus males espanta e as pontadas na coluna parece que até se somem ao som das cantorias alusivas à sua arte: «A água corre para o rio/ Do rio corre para o mar/ Olha a pobre lavadeira/ Sem ter água para lavar.» Tem boa voz, afinada, e sabe disso. Sorri com os elogios, mostrando os dentes estragados, e prossegue na lida, queixando-se dos tapetes e das passadeiras, «tão ruins para as costas». Tem um lenço na cabeça, avental a proteger a barriga, botas de borracha. Esfrega numa pedra pousada num bidão velho. Como aquele há outros, na ribeira. Tanques improvisados para lavadeiras de sempre.
Nas ervas, na margem da ribeira, está pousada uma carcaça e um pêssego. Quando a morrinha aumenta e se torna chuva mais grossa, Maria do Céu pede: «Ó minha santa, não se importa de emborcar essa caixa por cima da bucha, a ver se não vira açorda? Obrigadinha.» Hoje não trouxe almoço, a prever que, com o mau tempo, não teria companhia. «Às vezes trago um peixinho frito, uma perninha de frango com arroz, umas pataniscas... e comemos aí todas. Mas sozinha não me dá gosto.»
Não tem um preço certo porque não se paga à peça mas à sacada de roupa. Não se ganha grande coisa, a lavar as roupas dos outros. «A gente olha e faz um cálculo ao trabalho que aquilo vai dar. Pode ser cinco euros, pode ser dez, pode ser vinte. Às vezes acham caro. Algumas nem dão valor.»
Sobre o seu país, diz que está fraco, «está muito fraco, minha santa! Ganha-se para comer e mal! É uma pouca-vergonha. Devido a quem? Ao Coelho!» Fica um instante pensativa, com as mãos cobertas da espuma do sabão, que não lava a crise ou os políticos que considera culpados. «Tomara que lavasse, minha senhora! Isso é que eu me punha aí a esfregar!» Ainda assim, Maria do Céu não trocava o seu Portugal por nenhum outro país, distante ou próximo, ainda que com mais abastança. « Não! A gente sendo criadinhas aqui não queremos de cá sair. Gosto muito do meu Portugal. O meu filho está na França, casou por lá. Tenho três netinhos, três franceses. Por vontade deles já lá estava a viver. Nah! E o meu país? E o meu rio? Não percebo as francesas e ficar fechada em casa? Ui, Jasus ! Prefiro a vida de pobre, aqui no meu país, do que ir morrer para a França e deixar lá o meu corpinho!» Sorriu um sorriso grande. E mergulhou mais um tapete nas águas frias da ribeira, sua casa.


    Só neste país de e por Sérgio Godinho

Ela começou por ser uma das famosas anónimas, de que fala Sérgio Godinho na canção, uma das que já cumpriu os mínimos e que pergunta «que mais vão querer de nós?» . Hoje já não é assim tão anónima. O resto mantém-se. Continua a ser precária, apesar dos 29 anos, apesar da licenciatura em Relações Internacionais e do mestrado concluído em Bradford (Reino Unido). Paula Gil não tem grandes motivos para celebrar o 10 de Junho. Para começar porque não gosta do dia - «odeio, para dizer a verdade» -, a fazer lembrar Salazar, e um nacionalismo que nem é bom lembrar. Depois porque o país está num mergulho em queda livre sem fim à vista e a única celebração que lhe ocorre é a corrida dos cidadãos às ruas, em massa, para protestar contra o estado das coisas.
Paula Gil foi uma das fundadoras do Movimento 12 de Março (M12M), que partiu do protesto da Geração à Rasca: «Tudo começou com uma conversa entre amigos no Café Dona Ermelinda, ali ao pé do Museu do Fado. Estávamos a falar na canção dos Deolinda e chegámos à conclusão de que, ali naquela mesa, éramos todos precários. Decidimos organizar um protesto. E assim começou tudo.»
O 12 de Março foi um êxito que a surpreendeu. Não que faça coro com aqueles que acusam o povo português de ser amorfo. Ela não acha. «A História prova-o. Nos momentos certos o povo revela-se. Nós atirámos o conde Andeiro pela janela, fizemos greves ilegais, trincheiras em frente ao Parlamento, matámos o rei! Não, o povo não é amorfo. Está é profundamente desiludido com os governantes e com as instituições. E viveu demasiado tempo em ditadura. Mas não é amorfo.» A surpresa do sucesso do 12 de Março teve que ver com o número de gente que se juntou a ela e aos três amigos (Alexandre de Sousa Carvalho, António Frazão e João Labrincha) que deram o mote, naquele café de Lisboa. Foram cerca de quinhentas mil pessoas nas ruas. Esmagador. «Senti-me orgulhosa. Porque as pessoas perceberam que podiam exercer a sua cidadania sem ser a votar, de quatro em quatro anos. Foi uma participação cívica democrática contra uma política de austeridade e de ataque aos direitos dos cidadãos. E sinto-me orgulhosa porque sinto que, desde esse dia, há uma maior politização da sociedade.»
Voltando atrás, ao seu percurso, sublinhar que o mestrado em Bradford não veio embrulhado em papel de presente de uma família abastada. Podia ter vindo, que não era crime, mas a verdade é que Paula Gil trabalhou para o conseguir. Em Inglaterra foi para um call center , por cá foi guia turística a falsos recibos verdes. Seguiu-se o serviço de voluntariado europeu, no Luxemburgo, onde experimentou a assessoria de imprensa (área onde, de resto, se mantém). De novo em Portugal, colaborou no Observatório do Tráfico de Seres Humanos, fez um estágio profissional na Oikos, trabalhou na área da comunicação sempre com um pé dentro e o outro à beira do olho da rua. Paula é a primeira licenciada da família. Valeu-lhe de pouco, no que ao mercado de trabalho diz respeito. Mas ela garante que já calculava. Há muito que o canudo deixou de ser um passaporte para uma vida estável.
« Juro/ Plo fado/ Plo baile e plo kuduro/ Que este país ainda tem futuro», diz Sérgio Godinho. Paula Gil também quer acreditar que sim. Mas em vez de ficar estendida à espera, vai para a rua gritar. Organiza, mobiliza, mexe-se. Sabe que não é «só neste país» que a crise é aguda, sabe que a realidade europeia vive tempos conturbados, mas também tem a certeza de que a inevitabilidade da troika de que o governo fala é uma falsa questão. E, por isso, faz parte do movimento Que se Lixe a Troika (saiu do M12M): «Todos os países têm dívidas. Faz parte da lógica do mercado. Há estudos que referem que o trabalho efetuado em Portugal é suficiente para manter a economia ativa. Mas, por culpa de um empréstimo que resulta da pressão intensa dos bancos, o país está próximo da recessão. Fala-se muito de empreendedorismo. É risível porque só há empreendedorismo se houver consumidores. Ora, a maioria da população não tem dinheiro. E a partir do momento em que se quebra o contrato social, é a desesperança que reina.»
«Por isso unamo-nos/ Nós somos os famosos anónimos/ Mesmo assim já cumprimos os mínimos/ Somos todos únicos/ Que mais vão querer de nós .» Paula Gil ainda acredita e vai continuar a lutar. O seu país «é lindo e tem sol, e boa comida». Mas o melhor de tudo, para ela, são mesmo os portugueses: «Mesmo desiludidos, mesmo precários, mesmo com cortes de toda a ordem, continuamos a acordar de manhã, a trabalhar arduamente para que o nosso país se reerga. Isto é muito digno e muito nobre. E assim é Portugal.»



                        O Inventor de Portugal pelos Herois do Mar com Letra de Pedro Ayres de Magalhães

Se pudesse ver o país nos dias de hoje, o inventor de Portugal estaria contente. É a opinião de Rui Pregal da Silva, vocalista dos extintos Heróis do Mar, autores da canção que falava dessa entidade misteriosa que teria inventado Portugal. «Queixamo-nos muito, está no nosso ADN. Mas só quem não se lembra de como era o país em 1981 [ano da formação da banda] é que pode achar que estamos pior. Somos hoje um país muito melhor, mais aberto, mais cosmopolita, mais interessante. E menos pobre, apesar da crise. O que as pessoas têm de perceber é que a crise é mundial. Nós é que, como somos mais pequeninos, levamos uma pancada maior. Sim, acho que o inventor de Portugal estaria satisfeito com a sua invenção.»
Rui Pregal da Cunha tem uma história tão portuguesa que quase poderia ser um ícone do próprio 10 de Junho. A começar pelo nome da banda de que foi fundador , retirado do primeiro verso do hino nacional. Uma homenagem ao país, uma bandeira. As canções e o estilo militar com que se apresentaram, nos anos 1980, fizeram estremecer de pavor uma democracia ainda curta e frágil. Acharam que eram fascistas. Era demasiada saudade, nostalgia e nacionalismo. Habituados a ler nas entrelinhas, no pré-25 de Abril, houve quem achasse que aquilo tudo só podia ser um caldo perigoso. Depois, passou. E os Heróis do Mar continuaram, cantando o amor e a paixão e a alegria. Mas mesmo então, a iconografia manteve-se saudosista e portuguesa: os heróis do mar apareceram de calças de pescador, meias de crochet e botas inspiradas nos sapatos de criança dos anos 1940. Mais portugueses, impossível.
Quando a banda se dissolve, Rui Pregal da Cunha vai para Londres. E, assim, cumpre mais uma tradição lusa: a de partir, em busca de novos mundos, de novas oportunidades. É uma mistura entre um descobridor e um emigrante. Vai tocar e desbravar terreno na cena musical e, por outro lado, emprega-se no restaurante da Harvey Nichols.
Podia ter lá ficado, mas assim não cumpriria o estereótipo. Voltou. Por amor à Patrícia, que se tornou depois sua mulher, e por amor ao país. Trabalhou em publicidade, como produtor executivo de audiovisual e, há um ano, abriu um restaurante na portuguesíssima (e emblemática) Praça do Comércio. Um restaurante que, para não variar, é português até ao tutano. Chama-se Can the Can [traduzido dará qualquer coisa como "Pode a Conserva" ou "Conserva a Conserva", conforme o sentido que se queira dar-lhe] e é uma homenagem às conservas nacionais e ao fado, dois símbolos da portugalidade.
O cantor está contente com o projeto, que celebra a tradição sem esquecer a modernidade: «Eu acredito num Portugal que aprecia a tradição mas que quer ver o seu país no agora. Mas acho que não podemos estar sempre só a olhar para trás. O ideal é ter o passado e o presente de mãos dadas, com um pé no futuro. O "Can the Can" parece os "Heróis do Mar" em restaurante.»
Na Praça do Comércio, onde tanto da História do país já se passou, Rui Pregal da Cunha recorda a letra doInventor de Portugal e diz que a intenção, na altura, era ironizar o português que não valoriza o país que tem, que não enaltece os feitos históricos de Portugal e que não reconhece as suas riquezas. «Infelizmente acho que continuamos muito assim. Encantados com o que vem de fora, e a desmerecer o que temos cá dentro. Eu não. Por isso, para mim o Dia de Portugal é todos os dias. Porque acordo todos os dias contente por estar aqui. Contente mesmo!»


terça-feira, 30 de abril de 2013

HOJE QUERO PAZ !!!



                                        Photo Orlando Almeida


Mas a tarde fria que vai passando em silencio faz pensar que o mundo parou, mesmo assim navego num mar de pensamentos onde não consigo vislumbrar porto de abrigo.





segunda-feira, 1 de abril de 2013

Os portugueses carregam uma cruz demasiado pesada.

Em Notícias Magazine 31.03.2013


Precariedade. Desemprego. Empresas que fecham. Pessoas que são obrigadas a entregar as casas ao banco. Gente carregada de dívidas. E créditos. Que se vê na rua. Sem dinheiro para alimentar os filhos. Pais de crianças com necessidades especiais com outros dramas para lá do óbvio. Portugueses que deixam o país, e pior do que o país, a família, em busca de melhor vida. Em busca de uma vida. Reformados com reformas decepadas. Indignas. Fome. Desespero. Suicídios. Crise.Troika . Impostos. Endividamento. Carência. Austeridade. Os portugueses carregam uma cruz. Uma cruz demasiado pesada para as suas costas. São abertura de todos os noticiários, manchete de todos os jornais, tema de acalorados debates. Parecem percorrer uma espécie de via-sacra, o caminho percorrido por Jesus do Pretório de Pilatos até ao monte Calvário. Hoje, dia de Páscoa, em que se recorda a morte e se celebra a Ressurreição de Cristo, a Notícias Magazinetraça o paralelo entre a via-sacra e o pedregoso caminho que muitos portugueses estão a percorrer, em tempos de crise.


1 ª Estação: Jesus é condenado à morte
Parece uma loja de outro tempo, engolida por este tempo. Prateleiras e grande balcão de madeira, armários antigos com muitas gavetas, um gato gordo dormitando junto à máquina de escrever onde Mário Vinagre, de 68 anos, escreve mais uma carta dando conta do fim do negócio de uma vida. O apelido do proprietário - Vinagre - não podia ser mais cruelmente certeiro para os dias que ali se vivem. «Foram 24 anos aqui, à frente disto, fora os outros em que estive como empregado. Foi aqui que conheci a minha mulher, e estamos casados há 41 anos. Foi uma vida.»

Estão vazias, as prateleiras onde antes se alinhavam anzóis, carretos, fios, pingalins. A máquina registadora, tristemente oca de moedas e notas, está para ali, sem préstimo algum. Era preciso, segundo as novas diretivas do governo, substituí-la por outra, capaz de brotar faturas com números de contribuinte. Ideias pioneiras para um negócio que estava já nos últimos estertores. «Foi só mais um prego neste caixão. Não valia a pena mudar a máquina. Para quê? A loja já praticamente não vendia... 

Antes desse prego, já tinha havido outros, como a subida brutal dos impostos. Não há pequeno negócio que aguente.»Chamava-se Anzolmar, a loja de artigos de pesca, e ficava em Belém (uma crua ironia bíblica). Teve períodos áureos mas de há uns três anos a esta parte começou a ressentir-se da crise. «Esticámos a corda até onde pudemos. O contabilista bem nos dizia: "Isso já é só amor à camisola." Fomos percebendo que não dava mais. Agora fechamos de consciência tranquila. Não devemos nada a ninguém. Aqui na Rua da Junqueira, entre a Pastelaria Chique 2, que fica no número 274 e a Pastelaria Chique 1, que fica no 524, contámos 12 lojas fechadas. Havia aqui tudo: mercearias, drogarias, lojas de roupa, ourivesarias, fotógrafos... não sobra quase nada.»

Um desalento a que Mário e Aline Vinagre foram assistindo, num silêncio confrangedor. Quase como se não quisessem assumir, em voz alta, que seriam os próximos a ter de fechar portas. «Tínhamos dias em que nem a caixa abríamos. Ficávamos aqui horas sem ver entrar ninguém. Chega. Venho cá amanhã e depois vou entregar a chave à senhoria. Não venho mais. Se me custa? Não! Já custou tudo o que tinha a custar. Esta é uma morte há muito anunciada. Agora vamos para casa. Acabou-se.» 


2.ª Estação: Jesus carrega a cruz às costas
«Então, João? Então, meu amor? Como foi a noite, meu querido?» João não responde, nem há-de responder nunca. Tem três anos mas não vê, não fala, não anda. Nunca sorriu e só chora quando as dores são excruciantes. Limita-se a existir, e mal. Tem paralisia cerebral de grau 5 associada à síndrome de West, o pior tipo de epilepsia que existe, com convulsões violentas e constantes.
 Alimenta-se através de uma sonda nasogástrica e apresenta um quadro respiratório muito complicado.Célia Grazina, a mãe, tem 41 anos e uma dor cravada no corpo e na alma. É visível a sua dor, tão densa que é praticamente palpável. Sobretudo pela certeza de que esta é uma cruz que alguém lhe pousou nas costas. E não foi Deus, nem a natureza, nem o destino. «Foi gente cuja negligência me deixou um filho neste estado.»Célia e David já tinham uma filha, Beatriz, e quiseram dar-lhe um irmão. A gravidez correu sempre bem, foi desejada e acompanhada, todos os exames foram feitos, o bebé estava bem. O parto, porém, correu todo ao contrário: «Fui deixada nas mãos de uma equipa da MAC (Maternidade Alfredo da Costa) que claramente não sabia o que estava a fazer. Estive uma hora e meia em período expulsivo, com um monte de procedimentos inacreditáveis pelo meio. Tiraram-me o João em morte aparente, asfixiado por 1 hora e 40 minutos de período expulsivo.»

Célia e o marido apresentaram uma queixa-crime, o caso está em tribunal, em vias de conhecer um desfecho. Independentemente da decisão judicial, João é e será filho de Célia e de David. Para sempre. A vida destes pais é mais uma não-vida. Célia deixou de trabalhar durante dois anos e meio para se ocupar do filho. Durante esse período, contaram apenas com o ordenado de um, mais todas as despesas inerentes a uma criança com estas dificuldades. «O João é internado mês sim mês não. Quando está em casa, um de nós fica acordado toda a noite, para o podermos aspirar de cinco em cinco minutos porque ele não consegue engolir as secreções. Além disso, temos de vigiar as convulsões e dar medicação em SOS.»

Para poder trabalhar, Célia ainda tentou pô-lo no infantário onde a irmã tinha andado, mas a Segurança Social não disponibilizou ninguém com formação adequada. Teve de desistir. Agora, quando não está internado, passa o dia na Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, em Odivelas, e assim a mãe já pode trabalhar: «Voltei para o meu emprego, depois de dois anos e meio em casa. Estou há 18 anos na Socosmet e têm sido inexcedíveis comigo. Sabem que vou sempre ver o João antes de ir trabalhar, quando está internado como agora, e sabem que tenho de faltar várias vezes. Tenho medo de ficar sem emprego, mas é o meu filho, não o posso abandonar.»

A família não recebe apoios do Estado porque ambos, pai e mãe, trabalham. A crise abalou-os mas preferem manter-se ocupados e úteis do que subsidiodependentes: «Os pais que ficam em casa têm direito a tudo. Mas perdem a vida e a identidade e até a sanidade, creio. Eu precisava de trabalhar, antes que enlouquecesse. Mas acho que, com o que me fizeram, merecia mais ajudas do que as que tenho, que são nenhumas.»

Célia Grazina está emocionalmente devastada, exausta. Divide-se entre o desejo de não ver partir o seu João e o anseio por que cesse de vez o seu sofrimento, tanto sofrimento numa vida tão curta, num corpo tão pequeno. «Os médicos dizem-me que ele não dura muito e eu divido-me. Não tenho direito a pensar em nada. Limito-me a seguir em frente e a deixar nas mãos dos médicos e do divino.» 

Baixa os olhos, beija a testa do seu filho, e pergunta, para jamais escutar resposta: «Então João? Então, meu amor? Vamos sair do hospital, vamos?


3.ª Estação: Jesus cai pela primeira vez
Dois pacotes de leite, quatro iogurtes, uma garrafa de óleo, meia dúzia de ovos. Sónia Pinto, 29 anos, licenciada em História Moderna e Contemporânea e com uma pós-graduação em Património e Projetos Culturais, passa códigos de barras por um leitor e vai enfiando tudo em sacos. No final, diz o valor a pagar, recebe, dá o troco se for caso disso, e prepara-se para repetir tudo outra vez, ainda que os produtos e os códigos de barras variem. Arroz, feijão, bifes de frango, meio quilo de maçãs Golden.

Quando ouvia os pais falarem na importância do «canudo» ou quando estudava matérias como «Formação do Portugal Moderno», no ISCTE, não podia sequer supor que o seu destino seria a caixa de um supermercado. Mas foi. E é. E tudo indica que continuará a ser. «Durante o curso arranjei um part-time no Pingo Doce, para ter algum dinheiro. Depois, quando acabei a pós-graduação convidaram-me para um novo part-time e eu pensei que seria uma boa ideia, para ganhar uns trocos enquanto não arranjava emprego na minha área. Mal sabia eu.»

Mal sabia Sónia que o emprego na área nunca chegaria a aparecer. Ainda se candidatou a alguns concursos públicos para integrar Câmaras Municipais, mas nunca conseguiu passar das entrevistas: «Depressa percebi que os concursos públicos têm muito que se lhe diga. E acabei por desistir.»

O emprego que julgava temporário virou definitivo. Vai fazer cinco anos que é operadora de caixa no Pingo Doce. Há três que está efetiva. Ganha cerca de quinhentos euros de base e, neste momento, é chefe de caixas. E gosta. «Faço basicamente o mesmo, porque continuo a ser operadora de caixa. Só tenho um pouco mais de responsabilidade. O ato em si, de passar os produtos, é monótono. Mas gosto do contacto com o público. De algum público, porque também há os arrogantes, aqueles que acham que por estarmos numa caixa não somos gente. No outro dia um cliente disse-me, todo sobranceiro: "Se tivesse estudado não estava aí." Engoli em seco, para não ser mal-educada, mas doeu. Se não tivesse estudado? Tanto que estudei. E aqui estou.»

Os seus colegas de curso estão quase todos em situações semelhantes. Só meia dúzia está a trabalhar na área. Ela, que continua a adorar História, resignou-se. E só deseja mesmo continuar com o emprego que conseguiu arranjar: «Não tenciono sair daqui. Já percebi que não vou dar uso à licenciatura nem à pós-graduação, paciência. O país não está para aventuras. E também não me vejo a emigrar. Vivo com os meus pais, ainda. Talvez quando acabar de pagar o carro consiga pensar em arranjar uma casinha para mim. Ou então não, sei lá se consigo. Constituir família? Gostava, claro. Mas para já não está nos meus planos. É difícil...»



4.ª Estação: Jesus encontra a sua mãe
A casa era fria. Gelada. Filipa já se tinha queixado dúzias de vezes. Que tinha os pés frios. E as mãos. E o nariz. Que andava sempre constipada. Joel, o marido, sabia que era tudo verdade mas foi desvalorizando o assunto. Até que ela engravidou. Uma grande alegria. E então, sim. Já se justificavam as obras para tornar o T2 em Canidelo mais quentinho. «Fomos ao banco e requeremos um crédito para obras. Pedimos trinta mil euros. O processo foi-se desenvolvendo todo, veio a engenheira fazer a avaliação, e o meu gestor de conta disse que estava tudo muito bem encaminhado, que o crédito estava pré-aprovado e iam só tratar da burocracia para se assinarem os papéis.»

Joel Aguiar, 27 anos, tinha acabado de herdar algum dinheiro pela morte do pai e, ao receber as boas notícias do banco, decidiu avançar com as obras. Mandou vir os homens que costumam trabalhar com ele no negócio da restauração de casas e puseram mãos à obra. Partiram paredes. Portas. Janelas. Arrancaram o chão. Um dia, precisamente o dia em que o FMI entrou em Portugal, Joel estava no telhado a remover as telhas quando o telefone tocou. No visor do telemóvel, o número do banco. Atendeu e, do outro lado, a voz condoída do gestor de conta: «Venho dar más notícias». Joel sentou-se. «O crédito voltou para trás. Foi recusado.»

Faltam as palavras para descrever o que sentiu nesse momento. Estava no cimo da casa esventrada, com o céu por cima da cabeça e a escutar o barulho da destruição que os homens das obras iam fazendo, em baixo. Olhou para as nuvens, incrédulo. Não sabe quanto tempo esteve assim, imóvel, numa conversa muda com Deus. Tinha gasto parte do seu dinheiro, tornado a sua casa inabitável, estava a viver com a mulher e a bebé (que entretanto nascera) na casa dos sogros, e agora o banco recusava o crédito que parecia praticamente certo.

A obra parou, Joel e Filipa ficaram sem dinheiro para a concluir ou para comprar uma nova, tiveram de ficar a viver com os pais dela. Puseram a casa à venda, mas ninguém a quis comprar. Filipa engravidou novamente. Mudaram-se para a casa da mãe dele, onde vivem há 8 meses. A Leonor tem 1 ano e meio. A Laura tem 3 meses. Joel sente-se encurralado: «Sempre trabalhei, sempre fui independente. Nunca quis viver em casa de ninguém. E agora estou de mãos e pés atados.»

Foi assim que, certo dia, em desespero, decidiu criar uma página no Facebook: «Querem ganhar uma casa? Adiram ao evento». A ideia é tentar angariar cinco mil pessoas que se disponibilizem a dar vinte euros para entrar num sorteio: «O vencedor ficará com uma moradia térrea inserida num terreno de quatrocentos metros quadrados, a cinco minutos da praia de Salgueiros, por vinte euros.»

Joel Aguiar não sabe se o evento vai dar em alguma coisa, mas espera que sim. Afinal, ele só queria tornar mais quente uma casa gélida, para receber um recém-nascido. E agora só quer voltar a ter um teto para poder viver com a mulher e as filhas. E deixar a casa da mãe, que já é tempo.



5.ª Estação: Simão Cireneu ajuda Jesus
Segundo os Evangelhos Sinópticos, Simão Cireneu foi obrigado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Jesus Cristo até ao Gólgota, onde Jesus foi crucificado. Joaquim Sá não foi obrigado a nada e, por isso, a comparação só em parte faz sentido. Ele carrega as cruzes dos outros voluntariamente, porque assim lhe dita a consciência. Há trinta anos que o faz, com muito gosto, ou melhor, com o gosto amargo de quem assiste a cada vez mais pobreza e exclusão social.

Todos os dias a sua vida se repete. À hora do almoço, sai da Escola Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha, onde é administrativo, e vai buscar o almoço para dezenas de sem-abrigo que o esperam como quem, depois da noite, aguarda pela alvorada. É uma espera sem ânsia, porque é isenta de dúvida. Aquelas pessoas têm fome e sabem, de um saber feito certeza, que Joaquim Sá chegará, mais minuto menos minuto, para lhes saciar o vazio do estômago e, até, para lhes sossegar o vazio da alma. Porque ele não leva consigo apenas o desjejum. Leva sempre um olhar, uma palavra, um sorriso. Leva humanidade.

Depois de cumprida a primeira missão do dia, Joaquim volta para o trabalho. E à noite, regressa com a cruz que, não sendo sua, tomou por sua. Entre as 20h30 e as 21h00, é vê-lo de novo a calcorrear quilómetros, num passo acelerado, com sacos que deixam um perfume a comida quente pelas ruas sossegadas das Caldas. A essa hora, enquanto as famílias jantam, nas suas casas, Joaquim Sá distribui refeições, por detrás do CCC (Centro Cultural e de Congressos).

Há mais gente nesta rede de ajuda aos que nada têm, que este bom homem começou. Pessoas que cozinham, outras que doam as sobras de padarias e pastelarias da zona. Até se formou uma associação, em tempos, tal era a vontade contagiada de apoiar os desvalidos (Associação Volta a Casa). A Câmara interessou-se, na altura, e disponibilizou um espaço que era perfeito, para que as pessoas pudessem comer sem ser ao relento. O interesse durou nove anos, mas em 2010 o contrato não foi renovado. «Voltámos novamente para a rua.» E é onde estão, ainda.

Joaquim Sá tem 50 anos e um olhar que não se descreve. O olhar de quem já viu muito, mais do que esperaria ver. Nas ruas, todos o cumprimentam com um respeito raro. Sabem que ali vai um homem bom. Um homem que há trinta anos tomou para si as dores dos outros. E que agora, mais do que nunca, sabe que não lhes pode virar as costas.


6.ª Estação: Verónica limpa o rosto de Jesus
O homem entra cabisbaixo, os olhos pregados ao chão. Silencioso. Tão silencioso que quem não estivesse atento podia perfeitamente não dar por ele, espécie de fantasma errante a vaguear por ali. Entra, pede sem pedir uma dose de champô, pede sem pedir uma toalha, pede sem pedir desculpa por ter entrado, por estar, por ser. De seguida, desaparece para o interior do balneário e, pouco depois, o som jactante da água que lhe lavará o corpo de gente, e não de espectro, já ecoa pelo espaço, já anuncia, se não um homem novo, um homem menos transparente.

O homem, sabemos depois, tinha um emprego e deixou de ter. Cortaram-lhe a água por falta de pagamento. A mulher também está no desemprego. Os filhos, três filhos, tentam perceber que voltas são estas que as suas vidas levaram. Sabem de cor a palavra «crise», melhor que muitos porque a sabem de um saber de experiência feito.

O velhinho Balneário Público de Alcântara, nascido na década de 1930, já assistiu a muitas crises. Assiste agora a mais esta. Há uns anos, Vítor e Rosa, então funcionários do equipamento gerido pela Junta de Freguesia de Alcântara, incomodados com o facto de muitos dos utentes vestirem a mesma roupa imunda depois do banho, pediram roupas, arranjaram máquinas de lavar, e montaram um esquema de lavagem e entrega de vestuário a quem precisava. Um trabalho nobre. Entretanto, Vítor morreu, Rosa foi reformada, e quem continua esse trabalho é (outro) Vítor e Amélia, os novos funcionários do balneário.

Vítor garante que é preciso ter estômago para este trabalho. Porque desfilam por ali histórias que magoam a mais empedernida das criaturas. Também afiança que nestes três anos tem visto aumentar o número de gente sem eira nem beira. «Todos os dias há caras novas, sabe? E quando os vejo a arrastarem malas de viagem grandes, como se tivessem acabado de chegar do aeroporto, já sei que são mais uns que foram despejados de casa e que estão à deriva.»

Amélia encolhe os ombros, sabe que a vida não está para graças. E confessa que o que mais lhe dói é ver a miséria em que vivem as crianças e os velhos. «Nós aqui fazemos o que podemos, não é? E ficamos muito contentes quando há casos de sucesso. Como o do João, pai de quatro filhos, que estava desempregado, ele e a mulher. Ele vinha cá, arranjava-se muito bem arranjadinho e lá ia à procura de emprego. Felizmente conseguiu. As pessoas às vezes saem daqui mais confiantes. Basta um banho e uma roupa nova e... parece que há qualquer coisa que muda.»

E há. Chama-se devolução da dignidade. Às vezes é só o que é preciso. Na maior parte dos casos, porém, não é o suficiente. 



 7.ª Estação: Jesus cai pela segunda vez
Na sala de paredes brancas e cadeiras dispostas em círculo, a psicóloga Ana Sousa está de pé e fala para uma audiência de desempregados que frequentam o Brevet OP, da Oficina de Psicologia (http://oficinadepsicologia.com). Usa cartões onde estão escritos sentimentos, para que os participantes os organizem por grau. «Zangado», «Aterrado», «Angustiado», «Contente», «Feliz». As expressões mudam sempre que se fala dos sentimentos negativos, como se todos eles estivessem ainda tão impressos na carne de cada um dos presentes que se torna impossível disfarçar.

Ana Sousa, a psicóloga encarregue deste grupo, explica o que é, afinal, o Brevet OP: «É uma breve terapia de orientação prática para quem está a passar por uma situação de desemprego. Achámos que, com o extraordinário número de desempregados, era importante ter algo direcionado para esta população. São quatro meses, cinquenta sessões, das quais 16 são individuais e 34 em grupo. O objetivo é trabalhar a desmotivação, a desesperança e a desorganização em que nos chegam. As pessoas entram cá com grandes níveis de ansiedade, baixa autoestima e a sensação de que deixaram de ter controlo nas suas vidas. E saem com uma perspetiva completamente diferente. Saem com o brevet , para poderem voar.»

Humberto tem 62 anos e é engenheiro. Foi apanhado de surpresa pelo despedimento coletivo. Estava há 12 anos na empresa e nem o facto de terem sido muitos a sair lhe diminuiu a amargura: «Trabalho desde sempre, desde que me conheço. Não sei viver sem trabalhar. Fui-me abaixo e procurei logo estratégias para não me deixar cair em depressão. Tive conhecimento desta terapia, específica para desempregados, e não hesitei. E excedeu muito as minhas expetativas. Posso dizer-lhe que foi o melhor que fiz. Sofria de um mal que é muito comum, que é a procrastinação. Adiava o envio de currículos, adiava a procura ativa de emprego. Por medo de ser rejeitado. Depois da terapia perdi o medo. E agora estou em vias de ir para Angola trabalhar!»

É o único homem do grupo, o segundo grupo a iniciar esta terapia experimental. Ana Sousa explica que as mulheres têm menos dificuldade em procurar apoio. Os homens, muitos homens, ainda se regem pelo princípio de que um homem não chora, logo, um homem não pede ajuda. Humberto não se inibiu por ser o único, no meio de mulheres. Só queria acalmar a tristeza que lhe ia dentro. E assegura que conseguiu. A psicóloga, de resto, não podia estar mais satisfeita com os resultados: «São muito animadores. Porque os dois principais objetivos do programa têm sido cumpridos: melhorar a qualidade de vida das pessoas no desemprego e resolver a sintomatologia depressiva e ansiosa. As pessoas saem daqui com ferramentas muito úteis para a vida difícil que vão encontrar lá fora.»


8.ª Estação: Jesus encontra as mulheres de Jerusalém
Choravam por Ele, as mulheres de Jerusalém. Jesus, ao vê-las em pranto, disse: « Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas e por vossos filhos. Porque dias hão-de vir em que se dirá: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram!»
Não se pode dizer que esses dias, tão negros, tenham chegado à vida de Vanda Caldeira, Sónia Conceição ou Laura Groz. Estão todas grávidas e nenhuma tem emprego ou previsão de um lugar no mercado de trabalho para breve. Ainda assim, nenhuma consegue dizer que preferia não estar grávida porque qualquer uma das três está já enlevada pela sua condição.

Vanda Caldeira tem 36 anos e é formada em Marketing. A sua vida é uma soma de estágios precários e um único emprego estável que durou um ano. Depois desse, só um lugar numa empresa, a substituir uma baixa médica. «Durou um mês. Depois, inscrevi-me numa empresa de trabalho temporário só que descobri que estava grávida do meu primeiro filho. Foi em 2008.»

Quando o David fez um ano, a família partiu para os Estados Unidos, onde ficou dois anos: «O meu marido foi convidado para trabalhar numa empresa em Austin, no Texas. Mas em 2011 a empresa fechou portas e voltámos. Não arranjei trabalho e em Setembro de 2012 descobri que estava novamente grávida. Claro que ninguém mais me deu trabalho.»

Vanda põe as mãos na barriga e sonha com o seu rapaz, Eduardo ou talvez Gil, ainda não está decidido. E teme pelo futuro, seu e dele, claro que sim. «Estou grávida, já tenho um filho, não tenho vencimento... e tenho 36 anos. Estou a fazer um curso de formação de formadores, tenho umas ideias, que talvez resultem. Talvez...»

Sónia Conceição também tem 36 anos mas o Santiago será o primeiro filho. É licenciada em Contabilidade e Auditoria e, mal terminou o curso, arranjou logo trabalho num gabinete de contabilidade. Um dia, sem que nada o fizesse prever, a empresa fechou. Esteve um ano desempregada. Seguiu-se um trabalho temporário e voltou a ficar sem emprego.

Entretanto, engravidou. Uma gravidez não planeada, mas Sónia, que queria ser mãe e já estava com 36 anos, achou que era melhor não virar as costas ao destino. E, claro, todas as entrevistas de emprego terminavam em nada, mal assumia a sua condição de futura mãe. «Estou a receber do fundo de desemprego e sei que, se estiver muito aflita, tenho o apoio da minha família. Mas é assustador. Daqui a pouco estou com 37 anos e parece que para o mercado de trabalho já se é velho aos 37. Depois do bebé nascer terei de procurar, mesmo que não seja na minha área. Vale tudo, para lhe proporcionar uma vida em condições. Talvez não seja tão mau como estou a prever.» Talvez.

Laura Groz, 24 anos, tem apenas algumas cadeiras pendentes para terminar a licenciatura em Comunicação Empresarial. Já teve muitos trabalhos, nenhum na sua área. Num café, num call-center , no McDonald"s. «Soube que estava grávida em setembro. Não foi planeado. Estava desempregada e à procura de emprego na minha área há um ano. Depois, comecei a tentar em todas as áreas. Nada. Felizmente, o meu namorado trabalha. E a família ajuda. Senão... não sei o que seria de nós.»

O Miguel vai nascer em Maio e a mãe está naturalmente apreensiva com os dias vindouros. Talvez saiam do país, em busca de melhor vida. Talvez apareça um emprego. Talvez a crise abrande. Talvez a economia acorde. Talvez o mercado a integre. Talvez. Para as três grávidas no desemprego é esta a palavra que se destaca, mais do que qualquer outra: talvez.



9.ª Estação: Terceira queda de Jesus
O encerramento da sua fábrica têxtil, na freguesia de Sangalhos (concelho de Anadia) passou em horário nobre, em muitas televisões portuguesas. A SIC fez a reportagem, integrada na série Momentos de Mudança, e muitos foram os que se comoveram com o drama vivido por Vítor Rita, obrigado a fechar a fábrica erguida pelo pai, por falta de trabalho.

Porém, a comoção de quem está sentado no sofá, vendo desfilar tragédias alheias no pequeno ecrã, não enche barrigas nem paga as contas. E Vítor, que na reportagem chegou a afirmar que não se imaginava a sair do país em busca de melhor vida, teve de engolir as palavras como quem devora sapos. Sem conseguir arranjar emprego, foi forçado a partir: «Tenho um casal amigo emigrado na Alemanha e foram eles que me arranjaram trabalho. Estou há quase um ano a viver longe do meu país. Fechei a fábrica a 8 de março de 2012. Parti para Hamburgo no dia 8 de maio.»

Deixou a mulher e os dois filhos, a Mariana com 14 anos e o Francisco com 11. E, de cada vez que o repete, não contém as lágrimas. Vítor, 48 anos, é um homem de família. Sempre foi. E estar longe de casa mata-o devagarinho: «Há pessoas que levam esta situação de outra maneira. Suportam melhor. Eu não consigo. Para mim é um tormento estar longe da minha família. É uma dor inimaginável. Por isso, a minha vida em Hamburgo é casa-trabalho, trabalho-casa. Mais nada. Eu não vivo. Sobrevivo.»

Trabalha no restaurante de um português que é mais do que um restaurante. É uma fábrica. Mas de sucesso: «Ao fim de semana servimos cerca de mil refeições. É uma loucura. Nem sabia que podia existir um restaurante assim. Eu trabalho no bar. Esfalfo-me. Mas ganho três vezes mais do que ganhava quando era o dono da fábrica, em Portugal.»

Divide um apartamento com outro português, um rapaz de 20 anos. E mata saudades da família pelo Skype. Talvez sejam poucos os dias em que não chora os dois mil e tal quilómetros que o separam daqueles que ama. «A minha mulher tem uma doença crónica, esclerose múltipla, e tem sido uma heroína por aguentar tudo sem mim. Foi ela que me incentivou a vir, porque percebeu que em Portugal não tinha solução. É uma grande mulher...» E assim fica, de novo, em silêncio. A engolir esse enorme sapo que não há meio de lhe passar da garganta.

Do futuro nada sabe. Afiança que deixou de fazer planos. Limita-se a viver o hoje. «Gostava que a minha família viesse ter comigo. Mas tenho medo, sobretudo pela Mariana, que é uma adolescente, e para quem esse corte com as raízes pode não ser bom. Por outro lado, que futuro podem eles ter em Portugal? Que futuro? E eu? Como posso pensar em voltar se não há lá nada para mim? Tenho 48 anos... O futuro? Já só vivo o presente.» Um presente feito de distância, solidão e uma profunda tristeza.



10.ª Estação: Jesus é despojado das suas vestes
As molduras que exibiam sorrisos já desapareceram das paredes. Estão embrulhadas em jornal, arrumadas em caixotes de cartão. A metáfora perfeita para os tempos negros que se têm vivido naquela casa: sorrisos guardados em caixotes. À espera de melhores dias para voltarem a sorrir.

Nuno Medeiros tem 36 anos e está vestido com um fato de treino. Retira candeeiros, cortinados, eletrodomésticos e enfia tudo em caixas. Pede desculpa pelo caos, ao mesmo tempo que desmantela a casa. Naquele terceiro andar da Moita, quatro vidas são empacotadas, lentamente. Nuno tem de entregar a casa ao banco até ao final do mês. A casa que comprou mas que deixou de conseguir pagar. É casado e tem dois filhos, um com 15 e o outro com 9 anos. E tem uma tristeza tatuada no rosto, no corpo todo: «Eu e a minha mulher trabalhávamos ambos num grande grupo. Comecei como vigilante e fui subindo de posto até ficar como responsável de secção. Foi o meu mal.»

O mal de Nuno foi ter subido na hierarquia da empresa. Foi ter um ordenado fixo ao final do mês. Foi ter achado que tinha uma segurança que lhe permitia melhorar, crescer um bocadinho. Quis comprar uma casa com mais um quarto, para que cada filho tivesse o seu. Não foi uma moradia com piscina ou um duplex com vista de mar. Foi um apartamento, também na Moita, apenas com mais um quarto. Foi a sua extravagância. A sua loucura. «Caí na asneira de dar esse passo sem antes ter vendido a casa que tinha. A imobiliária deu-nos dois anos para vendermos a nossa casa e garantiu que era mais do que suficiente. Tudo foi facilitado em termos de créditos, durante esse tempo não se pagava juros, e eu acreditei que ia correr tudo bem.»

Não correu. Já lá vão quatro anos e a casa não foi vendida. De repente, Nuno Medeiros e a mulher tinham duas casas para pagar, um carro, mais as despesas normais do dia a dia. Entretanto, dispararam os juros. E as despesas fixas duplicaram. O casal sentia-se estrangular. Foi então que começou o desvario: «Recorri aos créditos fáceis. Foi aí que me enterrei de vez. Quando dei por mim estava engolido por créditos que contraía para pagar umas dívidas e que, claro, se transformavam em mais dívidas. É uma bola de neve que cresce sem que a gente dê conta. Comecei a não conseguir pagar nada. Já quase não dava para comer.»

A vida tornou-se um inferno. Não havia dia em que não recebessem telefonemas das empresas de crédito a reclamarem os pagamentos. Ligavam para casa, para o emprego, ligavam de dia, ligavam de noite: «Era uma pressão brutal. Cada vez que o telefone tocava eu começava a transpirar. As pessoas à volta já todas sabiam. Porque eles cercavam-nos por todos os lados. Achei que enlouquecia.»
Mas o pior estava para vir. A crise agravou-se e a empresa onde Nuno e a mulher trabalhavam começou um processo de redução de pessoal. Foram despedidos os dois. No desemprego e com tantas dívidas feitas rolo compressor, tiveram de tomar uma decisão. Até porque os pais de Nuno, fiadores das casas, corriam sérios riscos de sofrer as consequências do incumprimento do casal. Em setembro de 2012 foram declarados insolventes. E agora há um administrador de insolvência que lhes diz o que fazer.

Nuno Medeiros e a família vão agora mudar-se para um apartamento arrendado, mais pequeno, a alguns quarteirões da casa que vão deixar para trás: «Custa-me ter tido a ilusão de que podia comprar uma casa para deixar aos meus filhos. Não passou de uma ilusão. No início custou-me muito ter de entregar a casa, mas agora já não dói. Sinceramente, já só sinto alívio. Os últimos tempos aqui foram tão sofridos, passei tantas noites sem dormir que já nem tenho amor à casa. Vamos recomeçar. Agora só quero arranjar um emprego, pagar as minhas dívidas, dar uma vida digna aos meus filhos. E poder dormir descansado.»

Há caixotes um pouco por todo o lado e a mudança está para breve. As molduras que exibiam sorrisos já desapareceram das paredes. Sorrisos guardados em caixotes. À espera de melhores dias para voltarem a sorrir.



11.ª Estação: Jesus é pregado na cruz
A entrada do prédio, no bairro social do Rego, não tem porta digna desse nome. Está estilhaçada e não fecha. As escadas há muito que não veem limpeza e não há luz porque alguém levou todas as lâmpadas e até os globos que as protegiam. Sobraram os fios elétricos, alguns descarnados, à vista. Helena e José Costa Almeida vivem no 1.º esquerdo. Na porta em frente à sua vive uma enorme família de etnia cigana. Pai, mãe e nove filhos. Não há campainhas, nem para o lado esquerdo nem para o direito, ou melhor, existem apenas vestígios do que um dia terão sido as campainhas. A porta da família vizinha nem sequer tem fechadura, só um grande buraco redondo no seu lugar. Tudo foi destruído, como se houvesse uma raiva cega contra o prédio.

Helena tem 83 anos e sofre de Alzheimer. José leva um ano de avanço e, no olhar, só desesperança. Estão sentados um ao lado do outro, num sofá pequeno, e têm uma manta que cobre as pernas de ambos. José relata a vida que viveram e a que vivem agora e não são raras as vezes em que lhe treme o queixo, incapaz de segurar a tristeza. Ele foi mordomo e cozinheiro de uma família abastada, ela era criada de servir, na mesma casa. Viviam no chalé da família, no Estoril, com outros empregados. «A senhora dona Fernanda dizia-me ao domingo a ementa para toda a semana. Dois pratos ao almoço e um prato ao jantar. Havia muitos banquetes, jantares com muitos convidados. Eram muito bons senhores. Só tinham um senão: não faziam descontos para a caixa, para nós.»

E, assim, Helena e José têm uma reforma que, na soma dos dois, não chega a quinhentos euros. Viviam numa barraca, para os lados de Belém, mas há 13 anos que os meteram ali, numa casa camarária, num bairro habitado maioritariamente por ciganos. «Nunca tive nada contra os ciganos mas a nossa vida não é fácil. Partem tudo, gritam muito, estão sempre desavindos. Todos os dias dão pontapés na nossa porta. Vivemos num desassossego. Já fomos assaltados. Não saímos daqui para nada, a não ser para ir ali ao mercado comprar fruta e pão.»

Com eles vive o neto, filho de um único filho que se sumiu sem deixar rasto. O rapaz trabalha «com computadores», por turnos, a recibos verdes. «Ganha pouco, coitado, ainda no outro dia me perguntou se tinha dez euros para lhe emprestar.» Helena e José pagam 35 euros da casa, mais a luz, a água e o gás, fazem almoço e jantar para três. «Quando dá para comer comemos. Quando não dá... não comemos. Os medicamentos? Olhe, há um ano que não aviava um que tenho de tomar, para o inchaço das pernas. Mas agora tive mesmo de o comprar, que já quase não andava. O do coração corto-o ao meio, para durar mais. Vale-me a visita da menina Fernanda, uma das netas dos nossos patrões. Ela ajuda-nos muito. Se não fosse ela...»

Helena e José têm-se um ao outro, e mais nada. Em Setembro farão 54 anos de casados. Passam os dias ali, com a manta nas pernas, a ver as horas passar e a escutar as algazarras da vizinhança. Recordam os tempos áureos, em que viviam numa mansão, rodeados de tudo. Hoje estão cercados de nada. A ela, até as memórias se esboroam por entre os dedos. José olha a mulher, dá-lhe a mão e suspira profundamente: «Tomara que morrêssemos os dois no mesmo dia.»


12.ª Estação: Jesus morre na cruz
Parece uma criança assustada e, ao mesmo tempo, consegue ter o olhar acre de quem já viveu o inimaginável. Chama-se Helena mas todos a tratam por Leninha. Mais um contraste. Diz «sou a Leninha» e, olhando-se para ela, o diminutivo carinhoso não bate certo com ela, com a vida que tem sido a sua, com as noites passadas ao relento, envolta em caixas de cartão abertas que lhe servem de cobertor.


Leninha tem 19 anos e uma vida errante. Um pai violento, uma mãe que fugiu às agressões e deixou tudo para trás (ela incluída), várias amas de má memória, um internamento num colégio para crianças em risco, uma tentativa de violação por parte do próprio progenitor. Leninha vive nas ruas do Porto desde 2011. À mercê dos elementos. Faça chuva, sol ou vento. Diz que é difícil dormir na rua, sem uma casa, sem uma cama, sem o conforto de um colchão, a frescura de uns lençóis lavados ou o calor de uma manta. Mas que, ainda assim, é preferível esse relento a dormir em sobressalto, sem saber o que lá vem.


À noite, recebe um prato quente de comida, do Coração na Rua, um grupo de amigos que se juntou com o objetivo de tornar «mais quentes» as noites nas ruas do Porto, levando comida e agasalhos e palavras de alento a quem vive sem abrigo. Leninha agarra-se a Elisabete, uma das voluntárias, e chama-lhe «minha mamã». E então volta a ser uma criança, uma menina grande à procura de colo. Quando se anicha no peito daquela mãe emprestada, os olhos semicerrados de um prazer momentâneo, o diminutivo Leninha volta a fazer todo o sentido.


Os voluntários dizem que são cada vez em maior número os sem-abrigo do Porto. Que há crianças a implorar por uma tigela de sopa. Cristina e Bárbara são mãe e filha, e iniciaram estas saídas para as ruas. Depois, o grupo foi-se alargando e agora são mais de cem. Cristina já viu de tudo: «No outro dia apareceu uma professora, no desemprego, com cinco filhos. Partiu-me o coração. Todos muito educados, muito agradecidos pela refeição quentinha, gente que jamais se imaginou numa situação destas. E depois, com a crise, a Segurança Social deixa de pagar às pensões para albergarem quem não tem casa. E lá vêm mais uns tantos para a rua. Vai piorar ainda mais.»


Leninha já quase não se imagina de outra maneira, que a sua vida não tem sido um mar de rosas. O chão é a sua cama, as casas abandonadas são o seu teto, os cartões as suas cobertas. Leninha. Nome de criança e olhar acre de mulher. Morta, simplesmente, para uma sociedade que insiste em desviar o olhar quando por ela passa.





 13.ª Estação: Jesus morto nos braços de sua mãe
Dentro do caixão segue mais um dos solitários de Lisboa. Um homem, sem nome, sem idade, sem história. À volta, ninguém. Ninguém para o chorar, para sentir a sua falta, ninguém para se despedir, naquele que é o derradeiro momento. No cortejo, além do padre e dos funcionários da funerária, só uma mulher. Em silêncio. Na mão, uma flor.

Ana Campos Reis tem 60 anos e há dez que acompanha os funerais de quem não tem ninguém. Foi essa a missão que pediu para si quando se ligou à Irmandade de São Roque. Já terá assistido a perto de mil funerais. Mil almas que partiram sem deixar saudades. Muitas vezes, são verdadeiras almas penadas de quem nada se sabe. Nem nome, nem idade, nem história. Como este homem que agora avança, devagarinho, até à última morada, no Cemitério de Benfica. Ao caminhar, uns passos atrás da urna, Ana Campos Reis pensa: «Quem és tu? Quem foste? De onde vieste? O que terá sido a tua vida para que tenhas acabado assim, só, sem vivalma que te venha chorar?» Depois, reza.

Quando são mortos com nome, a enfermeira da Santa Casa da Misericórdia procura a sua história, tenta saber quem eram, que vida foi a sua, se alguma vez lhe passaram pelas mãos, no seu trajeto de vida. «O que mais me dói são as crianças. Os bebés. Os fetos. Normalmente dou-lhes um nome. Teresa. João. Rita. Onde estão os teus pais? O que falhou para não estarem aqui, no teu último momento? Porque é que tiveste uma vida tão curta?»

Todos estes mortos solitários têm direito a uma oração, sentida, todos recebem uma rosa vermelha, todos têm a presença, fiel, de uma mulher que vive e viveu toda a vida com os olhos postos nos outros. Uma mulher de fé, apesar de toda a miséria e abandono a que já assistiu em mais de quarenta anos de trabalho na Misericórdia de Lisboa. Uma mulher de fé, apesar de ter perdido um filho, num acidente, em plena juventude. «Essa foi a mais aguda de todas as dores. E talvez seja por isso que é para mim tão importante estar aqui, nos funerais dos que não têm ninguém. Sinto-me sempre perto do meu filho, nestes momentos. Rezo por quem partiu mas rezo também por ele. É, de certo modo, uma forma de estarmos juntos outra vez.»


14.ª Estação: Jesus é sepultado
Uns garantem que o caminho traçado pelo governo será a ruína de um país. Outros apostam que é esta a via certa. Há ainda os que se resignam, num conformismo dolente, gemendo que estas políticas são, afinal de contas, a única opção possível. Para estes portugueses, descritos nas estações anteriores, a esperança é o que lhes resta. Para alguns, nem essa já subsiste. Muitos são apenas mortos-vivos, gente que perdeu tudo, a casa, o norte, a fé. A crise entrou-lhes pela vida adentro e arrastou-os até ao Calvário. Para Jesus, o Calvário (em aramaico, Gólgota) foi o fim e o princípio. Foi no Calvário que foi crucificado e sepultado e foi do sepulcro que ressuscitou, ao terceiro dia. Resta saber se, depois da via-sacra que muitos portugueses estão a percorrer, haverá também lugar para a Ressurreição.