sábado, 15 de junho de 2013

Se Portugal fosse uma canção

Em Notícias Magazine 09.06.2013
por Sónia Morais Santos e Fotografia de Orlando Almeida


Na véspera do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, escolhemos algumas canções que falam de Portugal e fomos à procura das pessoas que encaixam nessas palavras - e que poderiam bem ter sido inspiração para elas. Um retrato cantado de um país que se celebra, ainda que não esteja em maré de celebrações. Eis os portugueses reais por detrás das canções sobre Portugal.




 Ai Portugal, Portugal de e por Jorge Palma

A canção pergunta de que é que Portugal está à espera. João Nogueira Santos, 41 anos, também. Há cinco anos que se pergunta o mesmo. Tudo começou com um momento de perplexidade: «Um dia, há cinco anos, descobri uma coisa que me deixou perturbado: nem eu nem nenhum dos meus amigos estávamos filiados em qualquer partido político. E no entanto estávamos sempre a queixar-nos os partidos. Um contrassenso. Como podíamos queixar-nos, se nem sequer nos dignávamos estar lá dentro, para escolher melhor as lideranças, para votar, para dar ideias, para influenciar? Tinha de fazer alguma coisa.»
E fez. Filiou-se no Partido Socialista . De seguida, falou na sua ideia ao amigo Carlos Macedo e Cunha, 40 anos, e juntos (um filiado no PS, o outro no PSD), criaram, em 2010, o movimento: «Adere, Vota e Intervém num partido político - cidadania para a mudança». O objetivo do movimento é levar um número maciço de cidadãos, com profissão fora da política, para dentro dos partidos políticos (sejam eles quais forem): «Votar de quatro em quatro anos não basta. É preciso exercer uma cidadania ativa, para que o real interesse dos cidadãos esteja representado em cada partido. Não faz qualquer sentido dizer que não se quer entrar num partido porque se vai ficar corrupto como os políticos todos. É um argumento tolo. Também não vale dizer que não se tem tempo. Há sempre tempo. E faz ainda menos sentido dizer que "isso da política é para os políticos", deixando em mãos alheias decisões que nos afetam a todos. A verdade é que podemos realmente mudar as coisas se agirmos coletivamente.»
Os anos passaram e nem João nem Carlos perderam o entusiasmo ou a fé nos cidadãos do seu país. Mesmo que pouco tenha mudado desde que eles começaram nesta luta. Sabem que têm ainda um longo caminho pela frente, até porque não se mudam mentalidades de um dia para o outro: «É uma causa em que acreditamos. E que é uma causa certa. Tem sobretudo que ver com o país que queremos para os nossos filhos. Nós não queremos continuar à espera do D. Sebastião. Queremos ser nós a decidir, a intervir, a ter uma palavra na escolha dos líderes em que acreditamos e nas medidas a serem tomadas.»
João Nogueira Santos é gestor de inovação , Carlos Macedo e Cunha é empresário. Nem um nem outro aprovam quem vive à sombra da política sem nunca ter tido profissão ou caminho fora dela. Mas reforçam que não querem diabolizar os partidos, pelo contrário: «Não estamos aqui a dizer que nós somos bons e eles são maus. Não é isso! Eles são é muitos e nós poucos. E é preciso lutar contra esta inércia dos cidadãos. Temos de acabar com os votos de autocarro. Com o jogo de interesses. Com a corrupção. Há políticos que defendem estas mudanças mas que não conseguem porque são poucos. E, por isso, há dentro dos partidos quem aplauda a nossa iniciativa e a entrada de sangue fresco. Há quem queira a renovação. Se cem mil portugueses aderissem aos partidos, a nossa vida mudaria, porque os cidadãos tornar-se-iam a força e o motor dentro dos partidos. E, a partir daí, o resto funcionaria bem. É preciso sair da zona de conforto!»
É, no fundo, a mensagem de Jorge Palma. Uma mensagem que provoca, que espicaça, que deseja que o próximo 10 de Junho seja comemorado com outro entusiasmo, com outra dignidade, com outro brio: «Ai, Portugal, Portugal/ enquanto ficares à espera/ninguém te vai ajudar .»


                            Homem do Leme Letra de Tim por Xutos e Pontapés

A expressão «menino de ouro» assenta-lhe que nem uma luva. Ricardo Carvalho tem 25 anos e já foi considerado o empresário do ano pela revista Exame . Dedica-se à compra de ouro, tem mais de setenta lojas espalhadas pelo país, sem recurso ao franchising , e fatura cerca de vinte milhões de euros por ano. No panorama atual, pessoas como ele são os «homens do leme».
Ricardo começou aos 18 anos a trabalhar com o pai n a compra e venda de ouro. «Comprávamos peças usadas e depois tornávamos a vendê-las. A partir de 2006 comecei a perceber que a crise estava a sufocar o negócio da venda de ouro. E então abri duas lojas de compra de ouro já não para tornar a vender, mas para fundir e vender para ouro de investimento.» Assim começava a Milénio Gold.
Foi uma espécie de navegação à bolina, a deste homem do leme. Os ventos da crise estavam de feição e foi só aproveitar. O barco ganhou velocidade e cruzou os mares agitados com sucesso. Impossível não pensar na ironia disto. Ricardo Carvalho é um empresário próspero porque o seu país está em maus lençóis. Enriqueceu aproveitando a aflição de muitos portugueses. «Claro que isso me ocorreu. Não é agradável pensar que se está a lucrar com a desgraça alheia. Às vezes chegam aí pessoas com histórias terríveis. Mas depois preferi pensar que, se não fossem empresas como a minha, muitas pessoas não conseguiriam ultrapassar esta fase difícil das suas vidas. Vendem o ouro, recebem o dinheiro e vão compor o que está descomposto. Se não o pudessem fazer era ainda pior.»
Já diz o ditado: vão-se os anéis, ficam os dedos. Ainda assim, não deixa de ser um paradoxo pensar que o seu negócio dourado depende de um país em tanga. Se o país - que é o seu - sair da crise, acaba-se o vento de feição e a pergunta que fica no ar é: será que o barco se aguenta? Ricardo tem a resposta na ponta da língua , não se atrapalha, não é parvo nenhum: «Se as coisas melhorarem, como espero que melhorem porque ninguém quer ver o seu país neste estado, podemos sempre voltarmo-nos para o negócio que o meu pai fundou e que foi onde comecei, de compra e venda de ouro usado.»
Apesar d e o negócio já estar mais estagnado do que propriamente a crescer, não só pela subida do preço do ouro como pela quantidade impressionante de lojas como as suas, Ricardo quer continuar a sua expansão. Gostava de chegar às cem lojas ainda este ano. Já abriu na Galiza e na Catábria e vai continuar a apostar em Espanha. «O meu sonho mais imediato é Madrid». O segredo do seu sucesso passa pela quantidade de lojas, por não ter sócios e por ter fugido ao franchising . Assim consegue preços mais competitivos do que os vizinhos do lado.
Por vezes também acontece não derreter algumas peças, por serem especialmente antigas ou até divertidas: «Um dia apareceu-me um pendente de um fio que era um pénis de ouro. Não o fundi porque achei graça. No que toca a coisas esquisitas... o pior são mesmo os dentes de ouro. As minhas funcionárias ficam sempre incomodadas, sobretudo quando é uma dentadura. Vê-se que aquilo foi retirado de um morto e arrepia. Depois, claro, há peças extraordinárias, que custa fundir. Mas não posso ficar com tudo. Tenho de ser racional.»
Ricardo Carvalho ganhou o Prémio Exame de 2013. É o empresário do ano. Numa altura em que se fala tanto em empreendedorismo, o seu nome sobressai. Ele pensou que era uma brincadeira, quando lhe ligaram a dizer que tinha ganho a distinção. «Eu trabalho muito, é verdade. Mas também acho que tive sorte. Limitei-me a aproveitar uma oportunidade. Se não fosse isto, sinceramente, não sei como poderia empreender. Fala-se muito de empreendedorismo mas... nesta altura? Empreender em quê? O país está numa crise profunda, as pessoas têm medo de arriscar e fazem muito bem em ter medo. Se não fosse a compra de ouro, eu podia bem estar a trabalhar numa fábrica qualquer. Mas fiquei contente, é sempre uma motivação. »



 Amália Rodrigues Povo que lavas no rio Letra de Pedro Homem de Mello 

Maria do Céu Oliveira tem 79 anos e é lavadeira desde que se conhece como gente. Ao todo, se pensar bem, serão mais de 70 anos de pés enfiados na ribeira das Luzes, Ovar, e mãos a esfregar camisas, calças, lençóis, colchas, tapetes. Mais de 70 anos a devolver a limpeza aos tecidos das freguesas que, mesmo depois de aparecerem e se vulgarizarem as máquinas de lavar, preferem o rigor e a perfeição das mãos das lavadeiras. «As freguesas gostam da roupa lavadinha à mão, minha santa. O sabãozinho faz a roupinha lisa, as mãos também e a água faz o resto, não sabe? A máquina está ali só trac-trac... não! Não gosto de lavar à máquina! Nem tenho! A minha roupinha trago e lavo aqui, como as outras.»
Não deixa de ser singular que, num país que se quer (e se diz) moderno, tecnológico e ufanamente europeu, haja ainda mulheres que parecem saídas da Aldeia da Roupa Branca , o filme de Chianca de Garcia de 1938. Na ribeira das Luzes, há lençóis estendidos nas ervas, a corar ao sol, e mulheres que cantam enquanto esfregam roupas alheias nas pedras. Parece cenário. Mas não é. Maria do Céu diz que é assim desde que é cachopa, se bem que hoje não são tantas as lavadeiras e que basta uma chuvinha - como a daquele dia - para não se chegarem ao rio, «as finas». Já ela, Deus lhe livre de ficar-se por casa, nasceu da água e é na água que se há de finar: «Dia que não venha ao rio já nem sei que me parece. Gosto muito, minha santa. Tanto que nem sei. Quando está solzinho até apetece a gente estar aqui. »
O contraste entre o país a dois tempos está em toda a parte mas não é preciso ir muito longe para o detetar. Basta, na verdade, olhar para a peça de roupa que Maria do Céu tem nas mãos, uma farda com a inscrição «Salvador Caetano», grande empresa com tecnologia de ponta, que ela ora mergulha na ribeira ora puxa à tona de água para nova esfrega manual com sabão branco Clarim. O país avançado nas mãos do país tradicional. Duas realidades da mesma realidade.
Maria do Céu é cantadeira, além de lavadeira. Já diz o povo que quem canta seus males espanta e as pontadas na coluna parece que até se somem ao som das cantorias alusivas à sua arte: «A água corre para o rio/ Do rio corre para o mar/ Olha a pobre lavadeira/ Sem ter água para lavar.» Tem boa voz, afinada, e sabe disso. Sorri com os elogios, mostrando os dentes estragados, e prossegue na lida, queixando-se dos tapetes e das passadeiras, «tão ruins para as costas». Tem um lenço na cabeça, avental a proteger a barriga, botas de borracha. Esfrega numa pedra pousada num bidão velho. Como aquele há outros, na ribeira. Tanques improvisados para lavadeiras de sempre.
Nas ervas, na margem da ribeira, está pousada uma carcaça e um pêssego. Quando a morrinha aumenta e se torna chuva mais grossa, Maria do Céu pede: «Ó minha santa, não se importa de emborcar essa caixa por cima da bucha, a ver se não vira açorda? Obrigadinha.» Hoje não trouxe almoço, a prever que, com o mau tempo, não teria companhia. «Às vezes trago um peixinho frito, uma perninha de frango com arroz, umas pataniscas... e comemos aí todas. Mas sozinha não me dá gosto.»
Não tem um preço certo porque não se paga à peça mas à sacada de roupa. Não se ganha grande coisa, a lavar as roupas dos outros. «A gente olha e faz um cálculo ao trabalho que aquilo vai dar. Pode ser cinco euros, pode ser dez, pode ser vinte. Às vezes acham caro. Algumas nem dão valor.»
Sobre o seu país, diz que está fraco, «está muito fraco, minha santa! Ganha-se para comer e mal! É uma pouca-vergonha. Devido a quem? Ao Coelho!» Fica um instante pensativa, com as mãos cobertas da espuma do sabão, que não lava a crise ou os políticos que considera culpados. «Tomara que lavasse, minha senhora! Isso é que eu me punha aí a esfregar!» Ainda assim, Maria do Céu não trocava o seu Portugal por nenhum outro país, distante ou próximo, ainda que com mais abastança. « Não! A gente sendo criadinhas aqui não queremos de cá sair. Gosto muito do meu Portugal. O meu filho está na França, casou por lá. Tenho três netinhos, três franceses. Por vontade deles já lá estava a viver. Nah! E o meu país? E o meu rio? Não percebo as francesas e ficar fechada em casa? Ui, Jasus ! Prefiro a vida de pobre, aqui no meu país, do que ir morrer para a França e deixar lá o meu corpinho!» Sorriu um sorriso grande. E mergulhou mais um tapete nas águas frias da ribeira, sua casa.


    Só neste país de e por Sérgio Godinho

Ela começou por ser uma das famosas anónimas, de que fala Sérgio Godinho na canção, uma das que já cumpriu os mínimos e que pergunta «que mais vão querer de nós?» . Hoje já não é assim tão anónima. O resto mantém-se. Continua a ser precária, apesar dos 29 anos, apesar da licenciatura em Relações Internacionais e do mestrado concluído em Bradford (Reino Unido). Paula Gil não tem grandes motivos para celebrar o 10 de Junho. Para começar porque não gosta do dia - «odeio, para dizer a verdade» -, a fazer lembrar Salazar, e um nacionalismo que nem é bom lembrar. Depois porque o país está num mergulho em queda livre sem fim à vista e a única celebração que lhe ocorre é a corrida dos cidadãos às ruas, em massa, para protestar contra o estado das coisas.
Paula Gil foi uma das fundadoras do Movimento 12 de Março (M12M), que partiu do protesto da Geração à Rasca: «Tudo começou com uma conversa entre amigos no Café Dona Ermelinda, ali ao pé do Museu do Fado. Estávamos a falar na canção dos Deolinda e chegámos à conclusão de que, ali naquela mesa, éramos todos precários. Decidimos organizar um protesto. E assim começou tudo.»
O 12 de Março foi um êxito que a surpreendeu. Não que faça coro com aqueles que acusam o povo português de ser amorfo. Ela não acha. «A História prova-o. Nos momentos certos o povo revela-se. Nós atirámos o conde Andeiro pela janela, fizemos greves ilegais, trincheiras em frente ao Parlamento, matámos o rei! Não, o povo não é amorfo. Está é profundamente desiludido com os governantes e com as instituições. E viveu demasiado tempo em ditadura. Mas não é amorfo.» A surpresa do sucesso do 12 de Março teve que ver com o número de gente que se juntou a ela e aos três amigos (Alexandre de Sousa Carvalho, António Frazão e João Labrincha) que deram o mote, naquele café de Lisboa. Foram cerca de quinhentas mil pessoas nas ruas. Esmagador. «Senti-me orgulhosa. Porque as pessoas perceberam que podiam exercer a sua cidadania sem ser a votar, de quatro em quatro anos. Foi uma participação cívica democrática contra uma política de austeridade e de ataque aos direitos dos cidadãos. E sinto-me orgulhosa porque sinto que, desde esse dia, há uma maior politização da sociedade.»
Voltando atrás, ao seu percurso, sublinhar que o mestrado em Bradford não veio embrulhado em papel de presente de uma família abastada. Podia ter vindo, que não era crime, mas a verdade é que Paula Gil trabalhou para o conseguir. Em Inglaterra foi para um call center , por cá foi guia turística a falsos recibos verdes. Seguiu-se o serviço de voluntariado europeu, no Luxemburgo, onde experimentou a assessoria de imprensa (área onde, de resto, se mantém). De novo em Portugal, colaborou no Observatório do Tráfico de Seres Humanos, fez um estágio profissional na Oikos, trabalhou na área da comunicação sempre com um pé dentro e o outro à beira do olho da rua. Paula é a primeira licenciada da família. Valeu-lhe de pouco, no que ao mercado de trabalho diz respeito. Mas ela garante que já calculava. Há muito que o canudo deixou de ser um passaporte para uma vida estável.
« Juro/ Plo fado/ Plo baile e plo kuduro/ Que este país ainda tem futuro», diz Sérgio Godinho. Paula Gil também quer acreditar que sim. Mas em vez de ficar estendida à espera, vai para a rua gritar. Organiza, mobiliza, mexe-se. Sabe que não é «só neste país» que a crise é aguda, sabe que a realidade europeia vive tempos conturbados, mas também tem a certeza de que a inevitabilidade da troika de que o governo fala é uma falsa questão. E, por isso, faz parte do movimento Que se Lixe a Troika (saiu do M12M): «Todos os países têm dívidas. Faz parte da lógica do mercado. Há estudos que referem que o trabalho efetuado em Portugal é suficiente para manter a economia ativa. Mas, por culpa de um empréstimo que resulta da pressão intensa dos bancos, o país está próximo da recessão. Fala-se muito de empreendedorismo. É risível porque só há empreendedorismo se houver consumidores. Ora, a maioria da população não tem dinheiro. E a partir do momento em que se quebra o contrato social, é a desesperança que reina.»
«Por isso unamo-nos/ Nós somos os famosos anónimos/ Mesmo assim já cumprimos os mínimos/ Somos todos únicos/ Que mais vão querer de nós .» Paula Gil ainda acredita e vai continuar a lutar. O seu país «é lindo e tem sol, e boa comida». Mas o melhor de tudo, para ela, são mesmo os portugueses: «Mesmo desiludidos, mesmo precários, mesmo com cortes de toda a ordem, continuamos a acordar de manhã, a trabalhar arduamente para que o nosso país se reerga. Isto é muito digno e muito nobre. E assim é Portugal.»



                        O Inventor de Portugal pelos Herois do Mar com Letra de Pedro Ayres de Magalhães

Se pudesse ver o país nos dias de hoje, o inventor de Portugal estaria contente. É a opinião de Rui Pregal da Silva, vocalista dos extintos Heróis do Mar, autores da canção que falava dessa entidade misteriosa que teria inventado Portugal. «Queixamo-nos muito, está no nosso ADN. Mas só quem não se lembra de como era o país em 1981 [ano da formação da banda] é que pode achar que estamos pior. Somos hoje um país muito melhor, mais aberto, mais cosmopolita, mais interessante. E menos pobre, apesar da crise. O que as pessoas têm de perceber é que a crise é mundial. Nós é que, como somos mais pequeninos, levamos uma pancada maior. Sim, acho que o inventor de Portugal estaria satisfeito com a sua invenção.»
Rui Pregal da Cunha tem uma história tão portuguesa que quase poderia ser um ícone do próprio 10 de Junho. A começar pelo nome da banda de que foi fundador , retirado do primeiro verso do hino nacional. Uma homenagem ao país, uma bandeira. As canções e o estilo militar com que se apresentaram, nos anos 1980, fizeram estremecer de pavor uma democracia ainda curta e frágil. Acharam que eram fascistas. Era demasiada saudade, nostalgia e nacionalismo. Habituados a ler nas entrelinhas, no pré-25 de Abril, houve quem achasse que aquilo tudo só podia ser um caldo perigoso. Depois, passou. E os Heróis do Mar continuaram, cantando o amor e a paixão e a alegria. Mas mesmo então, a iconografia manteve-se saudosista e portuguesa: os heróis do mar apareceram de calças de pescador, meias de crochet e botas inspiradas nos sapatos de criança dos anos 1940. Mais portugueses, impossível.
Quando a banda se dissolve, Rui Pregal da Cunha vai para Londres. E, assim, cumpre mais uma tradição lusa: a de partir, em busca de novos mundos, de novas oportunidades. É uma mistura entre um descobridor e um emigrante. Vai tocar e desbravar terreno na cena musical e, por outro lado, emprega-se no restaurante da Harvey Nichols.
Podia ter lá ficado, mas assim não cumpriria o estereótipo. Voltou. Por amor à Patrícia, que se tornou depois sua mulher, e por amor ao país. Trabalhou em publicidade, como produtor executivo de audiovisual e, há um ano, abriu um restaurante na portuguesíssima (e emblemática) Praça do Comércio. Um restaurante que, para não variar, é português até ao tutano. Chama-se Can the Can [traduzido dará qualquer coisa como "Pode a Conserva" ou "Conserva a Conserva", conforme o sentido que se queira dar-lhe] e é uma homenagem às conservas nacionais e ao fado, dois símbolos da portugalidade.
O cantor está contente com o projeto, que celebra a tradição sem esquecer a modernidade: «Eu acredito num Portugal que aprecia a tradição mas que quer ver o seu país no agora. Mas acho que não podemos estar sempre só a olhar para trás. O ideal é ter o passado e o presente de mãos dadas, com um pé no futuro. O "Can the Can" parece os "Heróis do Mar" em restaurante.»
Na Praça do Comércio, onde tanto da História do país já se passou, Rui Pregal da Cunha recorda a letra doInventor de Portugal e diz que a intenção, na altura, era ironizar o português que não valoriza o país que tem, que não enaltece os feitos históricos de Portugal e que não reconhece as suas riquezas. «Infelizmente acho que continuamos muito assim. Encantados com o que vem de fora, e a desmerecer o que temos cá dentro. Eu não. Por isso, para mim o Dia de Portugal é todos os dias. Porque acordo todos os dias contente por estar aqui. Contente mesmo!»


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